A relação entre o presente e o passado está sincronizada com os movimentos históricos. As tragédias se repetem como se fossem fatos novos, porque poucos reconhecem a relação entre o que passou e o que está acontecendo. Recuperar alguns fatos soterrados nos escombros do esquecimento pode determinar que o futuro não será construído pela escuridão que acompanha a ignorância. Mas, contemporaneamente, essa tarefa não se mostra fácil. Os mecanismos de embotamento intelectual estão cada vez mais sofisticados. A multiplicação de mentiras através das redes sociais, a ausência de reflexão crítica, o negacionismo, o populismo político – são muitos os fatores que impedem que a coerência se estabeleça como um dos elementos de análise.
O tempo narrativo do filme Ainda estou aqui (Dir. Walter Moreira Salles Júnior, 2024), baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, está situado nos anos 70 do século XX. Os sequestros de vários diplomatas estrangeiros serviram de desculpa para que o governo começasse uma série de prisões indiscriminadas, visando descobrir quem estava apoiando os grupos armados de resistência ao regime militar. Várias pessoas desapareceram, depois que foram presas, interrogadas e torturadas. Entre elas, o ex-deputado federal Rubens Paiva.
A luta de Eunice (Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva) para tentar encontrar o marido (e sustentar os cinco filhos) constitui a espinha dorsal do filme. Com a ausência de Rubens, o mundo familiar, até então alegre, desmorona. Para complicar, Eunice e uma das filhas, Eliana, são levadas para prestar declarações. Os órgãos de repressão querem obter informações – que elas não podem fornecer. A menina é libertada no dia seguinte. Eunice permanece detida vários dias.
O momento em que Eunice, depois que volta para casa e toma banho constitui uma das cenas mais emblemáticas. Mais do que limpar a sujeira corporal, quer expurgar o abjeto, os resíduos da barbárie. Mas esse momento particular está longe da questão concreta: o horror patrocinado pelas forças armadas continuou até 1985. E a certidão de óbito de Rubens só foi concedida pelo governo em 1996.
A presença do exército e da aeronáutica em todos os lugares, o enterro do cachorro (que foi atropelado), a interdição aos jogos de vôlei na praia, a falta de sensibilidade do gerente do banco, despedir a empregada, as cartas da filha que está em Londres, a mudança para São Paulo – o filme está repleto de pequenos acontecimentos. São esses fragmentos humanos, conduzidos com leveza e intensidade, que fogem do melodrama e, ao mesmo tempo, causam empatia no espectador.
O filme também cumpre com as expectativas de mostrar a violência do período ditatorial, embora alguns espectadores reclamem da ausência de ação (segundo o padrão do cinema estadunidense). Salvo uma ou outra cena, a escolha de um andamento narrativo lento contempla uma melhor definição dos personagens e das emoções. Nada do que está inscrito fora do ambiente doméstico serve de dispersão. Por isso, o campo de visão proposto pelo roteiro está limitado ao núcleo familiar.
A
excelente atuação de Selton Melo e Fernanda Torres adiciona qualidade e
segurança ao enredo – que termina com a magistral presença de Fernanda
Montenegro (sem emitir uma palavra, a tela iluminada por sua presença).
Walter Moreira Salles Júnior |
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