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quinta-feira, 14 de novembro de 2024

AINDA ESTOU AQUI

 


As tragédias se repetem como se fossem fatos novos porque poucos reconhecem a relação entre o que passou e o que está acontecendo. Recuperar alguns fatos soterrados nos escombros do esquecimento pode determinar que o futuro não será construído pela escuridão que acompanha a ignorância. Mas, contemporaneamente, essa tarefa não se mostra fácil. Os mecanismos de embotamento intelectual estão cada vez mais sofisticados. A multiplicação de mentiras através das redes sociais, a ausência de reflexão crítica, o negacionismo, o populismo político – são muitos os fatores que impedem que a coerência se estabeleça como um dos elementos de análise.

O tempo narrativo do filme Ainda estou aqui (Dir. Walter Moreira Salles Júnior, 2024), baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, está situado nos anos 70 do século XX. O trabalho da equipe de cenografia, que reconstruiu a casa e o ambiente daquele tempo  um mundo que só existe no passado  –, se aproxima da perfeição. 

A nota imperfeita está na repressão militar. Os sequestros de vários diplomatas estrangeiros serviram de desculpa para que o governo começasse uma série de prisões indiscriminadas, visando descobrir quem estava apoiando os grupos armados de resistência ao regime ditatorial. Várias pessoas desapareceram, depois que foram presas, interrogadas e torturadas. Entre elas, o ex-deputado federal Rubens Paiva.

A luta de Eunice (Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva) para tentar encontrar o marido (e sustentar os cinco filhos) constitui a espinha dorsal do filme. Com o desaparecimento de Rubens, o mundo familiar desmorona. Para complicar, Eunice e uma das filhas, Eliana, são levadas para prestar declarações. Os órgãos de repressão querem obter informações – que elas não podem fornecer. A menina é libertada no dia seguinte. Eunice permanece detida quase duas semanas.

O momento em que Eunice depois que volta para casa, e toma banho, constitui uma das cenas mais emblemáticas. Ao limpar a sujeira corporal, quer expurgar o abjeto, os resíduos da barbárie. No entanto,  esse instante particular está longe da questão concreta: o horror patrocinado pelas forças armadas continuou até 1985. E a certidão de óbito de Rubens só foi concedida pelo governo em 1996.  

A presença do exército e da aeronáutica em todos os lugares, o enterro do cachorro (que foi atropelado), a interdição aos jogos de vôlei na praia, a falta de sensibilidade do gerente do banco, despedir a empregada, as cartas da filha que está em Londres, a mudança para São Paulo – o filme está repleto desses pequenos acontecimentos. São fragmentos humanos, conduzidos com leveza e intensidade, e que fogem do melodrama ao mesmo tempo que causam empatia no espectador. 

O filme também cumpre com as expectativas de mostrar a violência, embora alguns espectadores reclamem da ausência de ação (segundo o padrão do cinema estadunidense). Salvo uma ou outra cena, a escolha de um andamento narrativo lento contempla uma melhor definição dos personagens e das emoções. Nada do que está inscrito fora da esfera doméstica serve de dispersão. Por isso, o campo de visão proposto pelo roteiro está limitado ao núcleo familiar e à ausência de Rubens   sempre presente.

A excelente atuação de Selton Melo e Fernanda Torres adiciona qualidade e segurança ao enredo – que termina com a imagem da magistral Fernanda Montenegro (sem emitir uma palavra, a tela iluminada por sua presença).   


Walter Moreira Salles Júnior





P.S.: Para quem quiser ver filmes com tema similar: Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios (Dir. Emir Kustorica, 1985) e O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (Dir. Cau Hamburger, 2006). 

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