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domingo, 9 de março de 2025

O PERIGO DE ESTAR LÚCIDA

 


Em tempo pretérito, quando fui professor de literatura em uma universidade particular, comecei a preparar um curso que comparava literatura e loucura. Por motivos extracurriculares a ideia não se concretizou. A ementa relacionava Maura Lopes Cançado (O hospício é deus, Editora Relicário, 2015), Lima Barreto (Diário do hospício e Cemitério dos vivos, Editora CosacNaify, 2010), Carlos & Carlos Sussekind (Armadilha para Lamartine, Editora Brasiliense, 1991), Machado de Assis (O alienista, Editora Vozes, 2016), Antonin Artaud (A perda de si: cartas de Antonin Artaud, Editora Rocco, 2017), além de outras referências ficcionais e teóricas sobre o assunto.

A leitura recente de O perigo de estar lúcida, da escritora espanhola Rosa Montero (Editora Todavia, 2023), mostrou que o caminho escolhido não estava errado, porém diversos atalhos tinham sido ignorados. Essas alternativas – se fossem levadas em consideração – poderiam conduzir para paisagens de belezas insuspeitas (impossíveis de serem visualizadas se fosse escolhida outra direção).    

Não importa o quão maluco você pareça: sempre há um punhado de gente no mundo que sente, pensa e age como você, afirma Rosa Monteiro, estabelecendo um diagnóstico (baseado na própria experiência). Ou seja, todos os indivíduos podem, em algum momento, serem contemplados com "a sorte grande" e perder a compreensão sobre o que está acontecendo ao seu redor.

A perda da lucidez (a perda da luz) ocorre de diversas formas. E resulta, em casos extremos, na depressão e/ou no suicídio. Não há um procedimento para a prevenção de acontecimentos que estão sintonizados em outra faixa de entendimento social. A normalidade é só uma convenção (como comprovou Simão Bacamarte) e raras são as situações em que é possível distinguir entre a excentricidade e a alienação. Muitas ilusões de ótica resultaram em prejuízos irrecuperáveis. Em outros tempos várias pessoas com supostos problemas mentais foram “domesticadas” com choques elétricos – o que, atualmente, é considerado uma violência degradante.    

Também não é possível ignorar aqueles que destoam do senso comum porque estão à procura dos paraísos artificiais (álcool, maconha, cocaína, etc.). As questões médicas, a legislação penal e as ações políticas e religiosas moralistas costumam entrar em conflito e o resultado inevitável é em desfavor daqueles que estão em situação econômica mais frágil. A estrutura social repressora é incapaz de analisar caso a caso – prefere instituir regras de validade coletiva.    

Rosa Montero, puxando a brasa para a sua sardinha, focaliza os suspeitos de sempre. Os artistas parecem ter um alvo nas costas. Dionísio, o deus grego das festas, do vinho, também rege a loucura – e isso explica muitas coisas, inclusive a existência de uma linha tênue que une a alegria com o delírio. A quantidade de escritores, pintores, músicos, etc., que, em algum momento, por diversos motivos, mergulharam no abismo, parece sinalizar que a crise não está distante desse povo.

Talvez seja essa uma explicação razoável para que o duplo seja um dos mais relevantes temas artísticos. Em algum momento, aquele que sou eu, sem ser eu, surge em cena e faz aquilo que eu, sendo eu, não seria capaz de fazer. O poeta é um fingidor, cravou Fernando Pessoa, ciente de que escrever, pintar, cantar, atuar, esculpir, filmar são apenas versões desse eu que se partiu em fragmentos. Em outras palavras, sem essa multiplicação do indivíduo seria impossível manter a sanidade. O eu é um movimento na multidão, escreveu Henri Michaux. Em versão ao sul do Equador, Mário de Andrade completou: Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta / mas um dia afinal eu toparei comigo... O artista é esse que se desdobra para não ver a própria face no espelho da vida, ou seja, para não enlouquecer. O mesmo se pode dizer sobre a figura do impostor, esse ser que quer ser o outro porque não está contente em ser quem é. Ao assumir a máscara daquele que idealiza, imagina que se transformou no objeto do desejo, como se isso, a impostura, fosse capaz de inibir as suas próprias deficiências e incorporar as qualidades que imagina existirem no outro. Quando percebe que essa meta é imaginária, só lhe sobra a perda da razão.   

Rosa Montero, em O perigo de estar lúcida, levanta questões importantes sobre a fragilidade humana e o esforço que é feito para estabelecer barreiras de proteção para a criatividade, considerando as inúmeras atrações na direção da escuridão.  

 


Rosa Montero

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