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terça-feira, 19 de agosto de 2025

SINAIS DE NÓS

 


Lina Meruane, ao descrever a enchente de 1982, que destruiu parte de Santiago, surpreende o leitor com uma frase quase imperceptível: olhávamos mesmo era para o teto, não para o naufrágio à nossa volta. Mais do que uma observação sobre a tragédia climática e a casa repleta de goteiras, o sentido metafórico espelha a história chilena e os horrores protagonizados pela ditadura de Augusto Pinochet (1915-2006).

Poucas vezes é possível perceber que o país está desmoronando, principalmente se você for uma criança entre 8 e 12 anos de idade. Com o olhar voltado ao passado, tentando conectar o que sabia naquela época com a visão do presente, as frases iniciais de Sinais de nós (Editora Relicário, 2025. Tradução de Elisa Menezes), um livro pequeno, 67 páginas, se mostram perturbadoras: Ninguém sabia de nada. Ninguém, como era possível? A violência recrudescia no país (...). Mas ninguém que conhecíamos havia sido demitido do trabalho ou tido a casa invadida, ninguém havia sido preso, interrogado, torturado; ninguém havia desaparecido, dinamitado, degolado a sangue-frio, queimado a sangue quente. Ninguém: era isso o que nós, meninos e meninas do colégio britânico, achávamos.

Em tempos de crise política, negar algumas situações costuma ser uma forma de defesa. Mas, por quanto tempo é possível manter essa cegueira? Nas periferias, a história era diferente, como mostraram mais tarde, por exemplo, os filmes Machuca (Dir. Andrés Wood Montt, 2004) e No (Dir. Pablo Larrain, 2012), que abrangem um longo período – cerca de 17 anos. O regime ditatorial iniciou em 1973 e somente foi substituído em 1990 (decorrência do plebiscito de 1988).

E a violência recrudescia sem nos tocar, sem ferir os nossos. E a Junta Militar decretava que as denúncias eram falsas ou que os desaparecimentos e as execuções eram suposições, pois não havia corpos que os comprovassem. E na falta de provas materiais nossos pais podiam afirmar, sem sentir que mentiam, que eram rumores infundados.  

São os pequenos incidentes que começam a chamar a atenção: um(a) aluno(a) que troca de escola ou então desaparece, os uniformes militares como vestimenta comum, o preço dos alimentos nos supermercados, a proibição de quaisquer tipos de reuniões, o toque de recolher. O corpo perverso do Estado, que massacra o corpo dos chilenos, vai transformando a infância em amargor, embora esse processo ocorra lentamente.

A família de Lina Meruane desfrutou de algumas vantagens: os pais eram médicos e durante algum tempo puderam viver em Estados Unidos. A volta foi traumática, um mundo completamente diferente: Quando aterrissamos no colégio britânico, dois anos depois, descobrimos que pouquíssimas crianças falavam outra coisa além da língua chilena, que meu irmão achou difícil e eu, ininteligível. O estranhamento se mostrou maior quando Lina conversou com uma amiga da escola, que estava machucada, o braço engessado, hematomas por todo o corpo, e descobriu que o pai dessa menina estava escondido: (...) sussurrou que tinha acabado de falar com o pai, mas só umas palavrinhas porque ele ligava para ela com moedas de um telefone público, ele, que havia meses tinha se mandado sem que ela soubesse para onde.

Casos similares começaram a se repetir, a suspeita de ser contra o regime ditatorial acionava o aparelho repressivo e as prisões se multiplicavam. Neste período, algumas pessoas desapareceram misteriosamente (que, muito mais tarde se descobriu que tinham sido mortas em sessões de tortura). Não tão perto mas às nossas costas, a violência política seguia impactando frontalmente os corpos cidadãos: por decreto, eles eram despidos de seus direitos cívicos, tinham sua legítima defesa legal negada, eram acusados de insubordinação, traição, terrorismo.  Foi um período em que os chilenos aprenderam a calar – e que a geração de Meruane só conseguiu superar quando entrou na Universidade e pode perceber que a redoma de vidro imposta pela ditadura militar estava rachada e que o ar que soprava de fora para dentro era de melhor qualidade.  

Retrato de época, o livro de Lina Meruane mostra, sob o olhar de uma criança, as transformações que ocorreram durante um período histórico turbulento.  

Não é verdade que nossas lembranças sejam apenas lembranças de uma lembrança.

 

Lina Meruane Boza

Obs. 1: Sinais de nós é o oitavo volume da coleção NOS.OTRAS, publicada pela Editora Relicário. Os outros volumes são: Viver entre línguas (Sylvia Molloy), E por olhar tudo nada via (Margo Glantz), Tornar-se Palestina (Lina Meruane), O mundo desdobrável (Carola Saavedra), A irmã menor (Mariana Enriquez) Posta-restante (Cynthia Rimsky) e 38 estrelas (Josefina Licitra).

Obs. 2: A literatura de Lina Meruane tem obtido boa recepção no Brasil. Além dos dois volumes que integram a coleção NOS.OTRAS, foram publicados o ensaio Contra os filhos (Editora Todavia, 2018) e os romances Sangue no Olho (Editora Cosac Naify, 2015) e Sistema Nervoso (Editora Todavia, 2020).  


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