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quarta-feira, 15 de outubro de 2014

AMOR EM DOIS TEMPOS



Estou contando minha história para não 
perdê-la,  já que o esquecimento é ativo.

 Depois de um casamento monótono, Vivian, que mora em São Paulo, acompanhada de uma amiga, Hilda, vence uma série de medos, inclusive o de viajar de avião, e protagoniza, em Salvador (BA), a história de uma mulher que não consegue dar fim às cinzas do marido. No cenário que emoldura – de muitas maneiras – uma espécie de cerimônia do adeus ao marido recém-morto, oscilando entre a dor e o patético, abre-se espaço para o deslumbramento – que se apresenta no proscênio e encena a dramaturgia do inesperado. As lembranças do passado contaminam o presente narrativo quando Vivian reencontra Lauro, velho amigo de infância e adolescência. Amigo? Não, ele foi mais do que isso. Foi o primeiro amor, um conjunto de promessas que não se cumpriu, a cicatriz que ainda lateja depois de muitos anos. Ao mesmo tempo, essa volta ao mundo pretérito constata que A vida passou e não nos levou junto; ao contrário, se desfez de nós.

Vivian, próxima dos setenta anos, protagonista e narradora do romance Amor em Dois Tempos, de Livia Garcia-Roza, percebe – de forma atabalhoada– que o destino sente prazer em transformar as histórias de amor em brinquedo. Por isso, seu relato se caracteriza por ser uma espécie muito particular de ajuste de contas com o abismo dos desencontros. Simultaneamente, por se tratar de uma narrativa parcial, vista apenas pelo olhar de uma das partes envolvidas da trama, são muitas as situações inconclusas. O destino das cinzas do marido morto reprisa um espetáculo do gênero pastelão. A amizade com Hilda, que se mostra mais preocupada com a urna funerária do que a viúva, deteriora lentamente. Da mesma forma, o relacionamento com as outras amigas, através de telefonemas que terminam abruptamente, mostra um alheamento que assusta. O relacionamento com o filho, Carlos Ozório, configura o leviano. As poucas conversas telefônicas e o modo com que os dois se relacionam é reafirmado, em diversas situações, com uma frase distante da vida doméstica, oposta ao mundo domesticado pela convivência social, Lembrei das palavras de meu pai: “Não seja uma mater dolorosa, minha filha”. Ou seja, Vivian não quer sofrer pelas perdas cotidianas, não quer ser uma “carpideira” do próprio luto. Diante da possibilidade de reatar o namoro com Lauro – que está casado e, possivelmente, não vai se separar da esposa para viver “a grande aventura amorosa” –, ela, como se fosse alguma heroína de algum romance do século XIX, constrói um fosso ao redor de seu castelo imaginário.

Ignorando as inúmeras amarras que precisou suportar ao longo do período em que esteve casada, Vivian, refletindo a condição de viúva, estabelece como dístico existencial uma declaração pouco razoável, (...) em lugar da quietude, escolhi estar ao lado do desejo. O leitor não se surpreende quando ela classifica o comportamento do marido morto com outra frase feita exclusivamente para a ocasião, Nunca se excedia em nada, cabia inteiro dentro de si, enquanto eu transbordo. Há algo de descomedido nessas duas declarações, nesses dois momentos de dispersão emocional, pois Vivian leva uma vida convencional, muito distante de aventuras e perigos. Talvez seja apenas o contraponto que julgou adequado para as inúmeras desculpas que empilha enquanto tenta explicar o complicado relacionamento com Lauro – que se mostra mais interessado em manifestar as vantagens da vida burguesa (restaurantes, vinhos, erudição musical) do que em namorar.   

Diante do amor, a libido está mais ligada aos sentimentos do que à atração física. Por isso, multiplicando os elementos biográficos, ficcionalizando a vida inteira que poderia ter sido e que não foi, como escreveu Manuel Bandeira, Vivian, a escritora, reconstrói a história de amor de um casal que se conheceu nos tempos felizes da infância, se perdeu no transcorrer da vida, se reencontrou por acaso na velhice e sonhou em recriar o mundo deles.

Amor em Dois Tempos, mais do que uma faísca de esperança na história de duas pessoas que superaram o desgaste do tempo, celebra a vida e o afeto.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

TEÇO-ME

Em Ithaca, Penélope aguarda pelo retorno de Ulisses. São mais de vinte anos de espera. Durante o dia, tece uma colcha. Durante a noite, desmancha-a. E, nesse abrir e fechar das portas do tempo, encena o tumulto emocional, posterga os acontecimentos, foge do horror.

Os versos e os poemas de Teço-me, livro de Arriete Vilela, flertam com aventuras épicas e figuras mitológicas – construções oníricas em que o amor e o sexo, a alegria e a solidão, o céu e o inferno são reinventados. Utilizando-se da palavra como uma máquina bélica empregada para derrubar muralhas e arrombar portas, Arriete não poupa esforços para multiplicar o poder mágico do discurso poético. Nada a detém. Quer transformar a matéria humana em enlevo. A palavra me capacita para o que devo ser: / flor de cacto em ponta de lança.  

Ciente de que não é apenas o empilhamento de versos que caracteriza a poesia, Arriete prossegue na direção do êxtase. Sobrevivente da luta inglória que travou contra o exagero sentimental – momento em que é possível perceber a impossibilidade de isolar os surtos de emoção da objetividade proposta pela razão –, soube separar os fios da linguagem e, ponto a ponto, com cuidado e atenção, teceu o poema.  Gravadas na pele nua das páginas do livro, as palavras exprimem contenção, clareza e criatividade. Avançam até o zênite e descobrem que Enquanto tardas, / reteço-me, / e, nas brechas do bordado, / o destino vai compondo os meus dias, / de modo ora gentil, / ora quase isso.    

Quando não se escora no feitiço que emana dos substantivos, verbos e adjetivos, o poema desafina, desaba, definha. Para tentar impedir essa erosão, Arriete elabora uma estratégia (ou um ardil) que está aquém dos portões gradeados, / sem acesso aos pretextos / da ficção. O poder de fabular (confabular) com as imagens que se perderam nas voragens humanas se expande nas vertigens originárias da poética e tenta exprimir  o relato da ausência de apenas um homem solitário / banido de si mesmo ou de uma mulher que tudo faz para que Deus fique sabendo de mim, / todo dia, / verso a verso.  

No espaço geográfico das sensibilidades propostas por Teço-me, os interstícios são preenchidos com entusiasmo, deslumbramento, excitação, pathos e hybris. É na tecelagem do poema, imagem simbólica daquele (homem, tema, desassossego) que um dia foi embora e deixou para trás um rastro de inconstâncias, que surge o retecer da dor, o desenlace das felicidades artificiais. Diante das âncoras prisioneiras / dos rochedos, as tormentas no peito angustiado, / aprisionado pela saudade, a inquietação não se transforma em calmaria. Nada é preciso ou precioso formas com que multiplica as agonias.

Acho que a poesia estava entranhada / na minha pele, / sempre à tua disposição, declara Arriete, evocando o canto das sereias. Entre ser amarrado ao mastro do navio e o mergulho nas profundezas do mar, ao leitor (Ulisses a-pós-a-moderna-idade) não é fornecida a mínima possibilidade de fuga. O poema grego, alagoano, brasileiro é tessitura, teia, rede, tecido, colcha, concha, imensidão.  


Poema 39


Enquanto tardas,

teço-me.

 

Com finíssimos fios

de aço, inscrevo-me na linguagem que sou

e busco a sintonia dos fossos

– inconscientes? –

nas entrelinhas. 

 

Enquanto tardas,

desteço-me

– e é quando os açoites da tua palavra ferina

esporeiam o dorso da minha poesia.

 

Enquanto tardas,

reteço-me,

e, nas brechas do bordado,

o destino vai compondo os meus dias,

de modo ora gentil,

ora quase isso.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

BARTLEBY



Em Por Que Ler os Clássicos, Ítalo Calvino defende diversas propostas em relação à leitura. Duas dessas teses, as de números 4 e 6, chamam a atenção. A primeira, Toda releitura de um clássico é uma leitura de descobertas como a primeira, encontra o seu corolário na segunda, Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. Poucos leitores esclarecidos pela história e pela teoria crítica são capazes de discordar desses enunciados.

Recentemente, reli Bartleby, o escrivão, de Herman Melville. O tempo que separou as duas experiências – vários anos – ajudou muito. Diante de um texto que sobreviveu aos desgastes naturais sem apresentar problemas de envelhecimento, sem subtrair as questões fundamentais, foi possível perceber diversos elementos que estavam invisíveis na primeira leitura.  E que passaram a fornecer um novo sabor. Ou melhor, um novo saber.

Considerada como uma narrativa que consagra a incomunicabilidade como tema principal, Bartleby, o Escrivão conta a triste história de um copista jurídico que, em determinado momento, adota uma postura que surpreende a todos. Ao se negar a exercer as atividades mais triviais do escritório de advocacia em que está empregado, Bartleby causa um curto-circuito nas relações de trabalho. Nesse momento, quando questiona a autoridade do patrão, elege a insubordinação como método de resistência contra posturas que produzem insanidade mental e política.

Ao repetir inúmeras vezes o mantra Prefiro não fazer, Bartleby se posiciona, de forma vigorosa, embora pacífica, contra a ética capitalista.  Na visão do narrador, que define Bartleby como um desses seres sobre os quais nada se pode dizer com certeza, exceto quando colhido nas fontes originais, que em seu caso eram por demais exíguas, o escrivão parece estar defendendo a tese que viver em função do trabalho não consagra a existência humana. Infelizmente, por diversos motivos, inclusive o óbvio posicionamento ideológico, ele (o narrador) não diz isso – confirmando a nítida dissintonia entre aquele que faz o relato e aquele que desestrutura o sistema de valores em que está edificado o capitalismo predatório (momento em que há uma ressignificação à subordinação feudalista e às novas formas de escravagismo que acompanham o período histórico posterior à Revolução Industrial).

Contrário à simplicidade política daqueles que condicionam a sobrevivência física com a alienação intelectual, Bartleby encena a figura do herói romântico, que sacrifica a própria vida em defesa de um ideal. No momento em que decide não mais compactuar com o pacto social, fecha todas as possibilidades ao entendimento. É isso que intriga o narrador – e, consequentemente, o leitor.   

O imobilismo de Bartleby, que se aproxima politicamente da desobediência civil e dos ideais libertários, encontra correspondência naqueles que, em determinado momento, se recusam a ser just a brick in the wall.