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sábado, 25 de outubro de 2025

NÃO COMPRO LIVROS NA AMAZON

 


Não compro livros na Amazon. Nas diversas vezes que tornei pública essa afirmação, não foram poucos os olhares de incredulidade e – simultaneamente – de curiosidade. Afinal, sou um bibliófilo – ou seja, alguém que ama os livros e os compra com frequência. Em seguida, me perguntam: qual é a alternativa? Usando da (pouca) paciência (que tenho), tento explicar a necessidade de apoiar as pequenas livrarias, os sebos e a economia local. Raramente consigo ter êxito nessa argumentação. Os preços e as vantagens adicionais oferecidos pelas grandes empresas (descontos, tempo de entrega, estoque, etc.) tornam qualquer discussão inútil. O imediato é mais valioso do que os benefícios obtidos a longo prazo. É o espírito do tempo, diria um cínico.

Fui criado em uma cidade que teve, durante determinado período histórico, quatro livrarias. Eu era freguês de todas. Duas eram bastante deficitárias (Nobel e La Fontaine). As outras (A Sua Livraria e Livraria Serrana) tinha as características que fazem das livrarias de rua uma expedição ao paraíso. Eram gerenciadas pelos donos, pessoas que conheciam os gostos dos clientes, aceitavam encomendas e, em casos especiais, faziam fiado. Também existia um sebo: Saber e Ler. O tempo passou, o vento mudou de direção, o ambiente ficou árido e as escolhas desapareceram. Simultaneamente, de forma mais abrangente, os suplementos culturais dos jornais (e as revistas especializadas) deixaram de ser publicados. As informações sobre os temas relacionados com a biblioteconomia (que era pouca e para poucos) ficaram voláteis e a Internet se transformou no grande oráculo – fornecendo respostas para enigmas inexpressivos.

O progresso tecnológico está contribuindo para modificar as conexões afetivas. Uma das consequências imediatas desse fenômeno pode ser constatada quando percebemos que o contato intimo com os livros está adquirindo outro significado. Além de ter perdido a aura (ver Walter Benjamin), o livro deixou de ser uma fonte de conhecimento ou de entretenimento e passou a ser considerado um produto comercial – muitas vezes, descartável. O marketing (seja através dos influencers, seja de forma mais ortodoxa) passou a determinar a ordem de prioridade nas relações de consumo.

Um dos gargalos da modernidade pode ser constatado no momento em que a cultura se confunde com a economia. De forma correlata, existe um processo imobiliário (similar à gentrificação) para a extinção das livrarias de rua (ou o deslocamento desses estabelecimentos comerciais para as grandes redomas da contemporaneidade: os shoppings).

Nesse cenário de devastação, a Amazon surge como se fosse uma tábua de salvação. Muitos leitores ficam encantados com a possibilidade de ter uma grande livraria ao alcance do laptop ou do celular. As compras virtuais passam a ditar a regra geral do comércio. Mas, esse tipo de pensamento ritualiza o erro. A empresa de Jeff Bezos (assim como outras empresas de comércio virtual) ambiciona – seja de uma forma ou de outra – dominar o mercado. E, em uma etapa posterior, aumentar os preços dos produtos que estão à venda. A proposição básica que orienta esse empreendimento pode ser sintetizada em uma única palavra: lucro.

Então, quais são as possibilidades em um mundo em que a tecnologia (aliada com os conglomerados comerciais) tomou conta dos laços sociais? Não existe uma resposta satisfatória para o impasse. Mas há escolhas menos danosas. E a principal é fazer o dinheiro circular entre os pequenos comerciantes (sejam físicos ou virtuais). Isso contribui para impedir o desemprego, combate a uberização dos serviços de entrega (um dos motivos da desestabilização dos Correios) e vitaliza as relações entre fornecedores e consumidores. 

A razão econômica é a razão do proprietário – nunca é a do cliente.     


terça-feira, 21 de outubro de 2025

SEDA

 


Alguns leitores influenciam outros leitores. Não é frequente, não é raro. Todo comentário ou resenha desperta curiosidade. Ocasionalmente, alguém menciona um livro que não está mais na moda, que perdeu os quinze minutos de fama, que está destinado aos saldos das livrarias ou às estantes dos sebos. Mesmo assim... Mesmo assim, são narrativas que sobrevivem aos interesses descartáveis do capitalismo (que estimula o consumo das novidades e nega qualquer discussão sobre a qualidade). 

Um desses casos é Seda, de Alessandro Baricco (Editora Companhia das Letras, 2007. Tradução de Léo Schlafman). Diversas páginas virtuais de literatura em Espanha, Portugal e Itália não medem esforços para o recomendar constantemente. E fazem isso com tamanha paixão que o contágio se estabelece com facilidade.

A narrativa está concentrada na história de Hervé Joncour (que mora em Lavilledieu, no sul de França). Ele compra e vende bichos-da-seda (ou melhor, os ovos do inseto). No início, viajava para o Egito e a Síria. Em 1860, uma epidemia de pebrina (doença infecciosa) tornou inviável nessas regiões a criação do animal (como tinha ocorrido antes na Europa). A indústria têxtil então se volta para o Japão – que fica do outro lado do mundo.  

Hervé Joncour precisa atravessar a Europa e a Ásia, em um percurso que dura cerca de seis meses. Pouco se sabe dos perigos que enfrentou nessa aventura (que se repete nas outras viagens). O marco decisivo para que a empreitada adquira sucesso está relacionado com o encontro com uma espécie de senhor feudal japonês: Hara Kei. É ele quem passa a fornecer a matéria-prima, é ele quem acolhe Hervé com um sentimento próximo da amizade – mas que vai se dissolvendo na medida em que Hervé fica fascinado (platonicamente) por uma das companheiras do japonês: Hara Kei estava sentado no chão, com as pernas cruzadas, no canto mais afastado do cômodo. Vestia uma túnica escura, não portava joias. Único sinal visível de seu poder, uma mulher estendida ao lado dele, imóvel, a cabeça apoiada no seu colo, olhos fechados, braços escondidos sob o amplo vestido vermelho que se alargava ao redor, como uma chama, sobre uma esteira cinzenta. Ele passava lentamente uma das mãos nos cabelos dela: parecia acariciar o pelo de um animal precioso, e adormecido.

A mulher se torna objeto do desejo e obsessão – inclusive porque inacessível. A frustração se concretiza toda vez que Hervé volta ao Japão – e a distância entre os corpos vai sendo construída como uma muralha cada vez mais inexpugnável (mas a atração nunca cessa).    

O choque cultural está presente em cada linha dessa narrativa fragmentária (65 capítulos curtos, no máximo duas páginas cada um), sendo que o narrador pouco se detém em detalhar a linha cronológica, preferindo se orientar na construção de imagens que mostram as incontornáveis distâncias entre o Ocidente e o Oriente.

Entre a poesia (expressa na linguagem seca, distante do sentimentalismo) e a prosa de um narrador em terceira pessoa que controla o fluxo narrativo com exatidão, o leitor encontra – na cena final – um Hervé que observa o inexplicável e suave espetáculo que fora a sua vida.    

 

TRECHO ESCOLHIDO

E viu uma árvore, à beira da estrada. E enforcado num galho, o rapazinho que o levara até lá.

Hervé Joncour se aproximou e por algum tempo ficou olhando para ele, como hipnotizado. Então desamarrou a corda, recolheu o corpo do rapazinho, pousou-o no chão e ajoelhou a seu lado. Não conseguia desviar os olhos daquele rosto. Por isso não viu a caravana se pôr a caminho, só ouviu, longínquo, o rumor da procissão que passava por ele, retomando a estrada. Não ergueu o olhar nem mesmo quando ouviu a voz de Hara Kei, a um passo dele, dizendo

– O Japão é um país antigo, sabe? Sua lei é antiga: diz que são doze os crimes pelos quais é lícito condenar um homem à morte. E um deles é levar mensagem de amor da própria patroa.

Hervé Joncour não despregou os olhos do rapazinho assassinado.

– Não tinha mensagem de amor com ele.

– Ele era a mensagem de amor.     


Alessandro Baricco

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

NÓS, OS LEITORES DE POESIA

 

Mary Stevenson Cassatt (1843-1926). Mrs. Duffee seated on a striped sofa,
reading.
Oil on panel, 1876. Museum of Fine Arts, Boston, Massachusetts. 


Dizem que os livros de poesia não são produtos com grande fluxo de venda. Por isso, e por outras razões, costumam ficar esquecidos nas estantes das livrarias – onde, eventualmente, serão adquiridos pelo mais assustador dos fantasmas literários: o leitor de poemas.

Livros são, antes de tudo, mercadorias. E, nessa prosa descolorida, mas que projeta render loas ao capitalismo, ninguém oferece rima ou solução. São as regras do jogo e só os loucos rasgam dinheiro. Tudo está reduzido à questão econômica. Poesia não dá camisa a ninguém (como era comum afirmar em tempos ancestrais). Mesmo assim, a leitura consolida um ato de resistência contra a objetificação – especificamente – da poesia e do poema.   

En la lucha de clases / todas las armas son buenas / piedras / noches / poemas, escreveu Paulo Leminski, para nos lembrar que o ato poético está intrinsecamente ligado com a política e que, simultaneamente, o poema, mais do que um catálogo de emoções, não deve (não pode) ficar à margem da História e sem reagir aos acontecimentos. Essa conversa de I have measured out my life with coffee spoons (tenho medido minha vida com colherinhas de café), do T. S. Eliot, não combina com quem vê a poesia como proposta política, social e econômica.

Você entra na livraria e vai procurar pelos livros de poesia? Eu vou. E, claro, são poucos, quase nenhum, os que encontro. Na mentalidade utilitarista, há quem imagine que esses livros estão ocupando o espaço dos besta-sellers, dos livros que projetam lucro. O comum é encontrar publicações destinadas ao universo escolar, alguns títulos da lista de leituras para o vestibular.  Os outros, aqueles que o leitor interessado na poesia (no versificar do existir) procura, talvez estejam em locais obscuros, embaixo de uma escada ou no fundo do estabelecimento. Com sorte talvez seja possível localizar um ou outro lançamento (desde que sejam de alguma editora conhecida), livros que foram recomendados pelos pseudocríticos das redes sociais e que receberam miríades de adjetivos sem substância, algo parecido com “manifestação de sensibilidade e delicadeza de quem sabe interpretar o mundo através de imagens inigualáveis”.

A poesia mimetiza Medusa – ser mitológico com cabelo de serpente, corpo escamoso e que transformava em pedra aqueles que a olhassem diretamente. Uma probabilidade: o medo afasta o leitor de poesia. E se alguém for capaz de traduzir os seus desejos mais íntimos – aqueles que esconde inclusive de si mesmo – e os revelar ao mundo? Esse espelho não tem boa aceitação no mundo a-pós-o-moderno. Surge em represália para essa ameaça (fragmento de rocha ou estátua de sal) o ódio à poesia. Um afastamento seletivo, uma negação de tudo o que constitui o humano. Ben Lerner escreveu um ensaio erudito sobre o tema e concluiu dizendo: Tudo o que peço aos odiadores – dos quais eu, também, sou um – é que se esforcem para aperfeiçoar seu desprezo, pensando até em levá-lo a se relacionar a poemas, em que ele será aprofundado, não dispersado, e em que, criando um lugar para a possibilidade e as ausências presentes (como as melodias não ouvidas), ele pode chegar a se parecer com amor.   

Talvez seja isso: a poesia desencadeia tempestades, causa contradições, nos faz entrar nas livraria, procurar por livros de poesia e ser surpreendido por Cristina Peri Rossi:


É bom lembrar – ante tanto esquecimento –

que a poesia nos separa das coisas

pela capacidade que tem a palavra

de ser música e evocação,

além de significado,

o que permite amar a palavra infeliz

e não o estado de infortúnio.

Tudo isso não precisaria ser dito outra vez

se o leitor

– tão desmemoriado quanto qualquer poeta –

recordasse um poema de João Cabral de Melo Neto:

flor é a palavra

flor, verso inscrito

no verso,

que li há anos,

esqueci depois

e hoje voltei a encontrar,

como você, leitor,

leitora,

faz agora.  



Peter Worsley. Woman reading. Oil on canvas.


quarta-feira, 1 de outubro de 2025

KITCHEN

 


Acontece. Muitas vezes. O leitor compra o livro e não o lê. Emparedado na estante, o volume fica hibernando por tempo indeterminado. Somente volta à vida por algum motivo aleatório. Foi esse o caso com a primeira edição de Kitchen, de Banana Yoshimoto (Editora Nova Fronteira, 1995. Tradução de Julieta Leite).

O lugar que eu mais gosto neste mundo é a cozinha, afirma Mikage Sakurai, protagonista da primeira narrativa (a segunda se chama Moonlight shadow). Com esse início, o texto poderia enveredar para algo relacionado com a gastronomia, aqueles dramas complicados de chef de cuisine, a luta por conseguir clientes, estrela Michelin e, fundamentalmente, superar a ansiedade e a loucura. Nada disso. Quer dizer, o mundo culinário está presente, mas não ocupa o primeiro plano. A questão principal tem outros sabores: afeto e luto. E isso está expresso com delicadeza e poesia.

Após o falecimento de sua avó (que a criou após a morte dos pais), Mikage vai morar com os Tanabe (Yuichi e Eriko) – pessoas que lhe eram completamente estranhas. São seis meses especiais em que a hóspede se sente acolhida. Em determinado momento, ela vai morar em outro lugar: naquele verão tinha-me dedicado a aprender sozinha a arte de cozinhar. O mundo adquire outro formato, na medida em que Mikage vai descobrindo sua verdadeira vocação profissional.

O retorno acontece quando Yuichi lhe comunica que Eriko foi assassinada. Essa reaproximação através da perda parece conduzir ao estágio que contesta a afirmação: Para nós dois, o outro era a pessoa mais próxima no mundo, o amigo insubstituível.

A voz de Mikage vai relatando as complicações existenciais, uma longa reflexão sobre o que significa estar sozinha no mundo, sem ter em quem se apoiar. É o sofrimento que envolve Yuichi que altera a ordem dos sentimentos de Mikage: Yuichi, não quero perder você. Nós dois, vivendo sozinhos, sempre vivemos sem pensar muito nisso, da forma mais indolor possível. Não podíamos fazer outra coisa: a morte, que na nossa idade não deveríamos ter conhecido tão de perto, era pesada demais para nós. Pode ser que no futuro, estando comigo, você passe por dores, dificuldades, problemas, mas, se você quiser, podemos construir uma vida complicada, mas mais feliz que uma vida solitária.  

Não é exatamente um happy end, mas indica que os dois jovens vão construir um caminho menos triste.


Moonlight shadow é uma pequena novela que complementa o volume e que transita por algo que poderíamos chamar de sobrenatural. Os jovens Hitoshi e Yomiko morrem em acidente. Seus parceiros Satsuki e Hiiragi (irmão de Hitoshi e namorado de Yomiko) têm dificuldades para superar a morte.

A pessoa amada só devia morrer depois de uma longa vida. Perdi Hitoshi aos vinte anos, diz Satsuki, a narradora.

Em dado momento, quando Satsuki está bebendo chá enquanto olha para o rio que divide a cidade, surge em cena Urara, uma espécie de anjo da anunciação. É uma situação estranha, onde aparecer e desaparecer se torna a regra geral. No lugar onde morreu alguém que a gente amava, o tempo para por toda a eternidade.

Moonlight shadow (inspirada na canção de Mike Oldfield) é uma narrativa sobre sonhos, conexões com a morte, tristeza e superação do passado – usando uma linguagem sensível, onde cada palavra adquire o caráter de um dom precioso, capaz de exprimir os sentimentos humanos.


 

P.S.: Banana Yoshimoto é o pseudônimo que Mahoko Yoshimoto, em uma referência às flores vermelhas da bananeira. É autora de Kitchen (Editora Nova Fronteira, 1995; Editora Estação Liberdade, 2025), Tsugumi (Editora Estação Liberdade, 2015), e Doce Amanhã (Editora Estação Liberdade, 2024).


sábado, 20 de setembro de 2025

O HIPOPÓTAMO

 


Em um tempo distante, antes do mundo ser o que Rodrigo entende como o mundo, aconteceram muitas coisas estranhas. Esse descompasso pode ser medido por sua pouca idade (sete, oito anos), pelas relações com os colegas na escola em São Paulo, pelas visitas aos avós em Porto Alegre, pelas inúmeras descobertas que a vida vai lhe apresentando a cada instante.  

São muitos os sinais de que algo não está bem. As crises nervosas da mãe, as marcas no braço da mãe (nove bolinhas espalhadas aleatoriamente do pulso até a metade do antebraço, pequenos círculos escurecidos e enrugados que mais parecem as pegadas de um hipopótamo em miniatura), a separação do pai e a mãe (um dia, muito tempo atrás, numa época tão remota quanto a dos dinossauros, aqueles dois continentes estiveram unidos), as perguntas recorrentes do pai sobre a mãe, os namorados da mãe.

Durante um período das férias, em Porto Alegre, Rodrigo e a mãe saem para comprar leite. Nesse momento a rotação da Terra é alterada, tudo adquire um outro andamento. Rodrigo demora um pouco para perceber, dá alguns passos sozinho até ouvir o estalo atrás de si. Vira e flagra a mãe imóvel, a barra da saia encharcada de leite, a garrafa quebrada rolando por baixo da gôndola. Ela tem a boca entreaberta, os braços jogados ao longo do corpo, o olhar fixo para o fundo do corredor, onde um funcionário etiqueta produtos e um velhinho de boina escolhe sabão em pó.

Essa cena, completamente incompreensível para o menino, gera uma mudança nas relações familiares que aos poucos se torna perceptível e começa a incomodar: quando voltam para São Paulo, as notas na escola despencam, o isolamento aumenta e nada parece fazer sentido. Sem conseguir explicar o que está acontecendo (inclusive porque ficou muito confuso quando viu uma conversa complicada entre o pai e a mãe), Rodrigo passa a ser outro – diferente daquele que se divertia com as histórias que o avô contava (inventava) sobre Winnetou. 

E assim, como se estivesse desenhando o percurso com traços que estão perdendo a nitidez, um pouco borrados, Rodrigo vai crescendo, vai descobrindo que ultrapassar a infância e mergulhar na adolescência – essa antecâmara da vida adulta – sempre será um processo doloroso.

A transição produz algumas compensações. A principal é a que proporciona (em lugar do isolamento e solidão) a possibilidade de abrir espaço para que Rodrigo adquira voz, e possa expressar todas as suas dúvidas e, ao mesmo tempo, exorcizar os seus fantasmas e os da mãe.  

A tempestade envolve o carro como um lençol azul. Por um momento nada parece se mover: o carro roda sem sair do lugar, a mãe dirige sem mexer um músculo; o próprio Rodrigo parece envolvido por uma casca fria e dura. Seria bom seguir assim, seria perfeito, estar dentro de algo mas fora do mundo, os dois boiando num presente puro, uma tarde infinita. Seria perfeito, mas o barulho do limpador o devolve à realidade, ao metralhar da chuva, aos carros que ultrapassam e buzinam ao redor, e embora olhe fixamente para a frente a mãe de certa forma também o observa, suas mãos agarradas ao volante o encaram, e seus braços, e as marcas em seus braços, e Rodrigo sente que poderia dizer alguma coisa, que esse seria um ótimo momento para começar a falar.

O narrador onisciente de O Hipopótamo (Chico Mattoso, Editora Todavia, 2025) conseguiu impor um tom lírico nessa espécie de bildungsroman (romance de formação), mas sem omitir o quanto é doloroso descobrir que o passado sempre cobra tributo ao presente. A história que uniu e separou os pais de Rodrigo é também uma parte da história do Brasil.

 

Chico Mattoso é o autor dos romances Longe de Ramiro (Editora 34, 2007) e Nunca vai embora (Editora Companhia das Letras, 2011).