A crise estética está instalada. Novas avaliações sobre alguns conceitos sociais, baseadas na fluidez da modernidade, forneceram um afastamento radical do pensamento clássico – aquele que pretendia imitar a beleza grega. Um dos primeiros sinais dessa mudança apareceu no Manifesto Futurista, de 1909, proposto por Filippo Tommaso Marinetti (1876 - 1944) e outros escritores italianos. Ao glorificar o progresso e as máquinas de guerra (... um automóvel rugidor, que corre sobre a metralha, é mais bonito que a Vitória de Samotrácia), instituíram um novo olhar sobre a arte e a sociedade.
A proposta dos futuristas determinou que a hostilidade acrescenta valor ao objeto artístico. Sem o mínimo constrangimento, declararam: Não há mais beleza, a não ser na luta. Nenhuma obra que não tenha um caráter agressivo pode ser uma obra-prima. Com esse pensamento impactante ficou estabelecida a eliminação sumária das paisagens pastoris, das cenas do cotidiano urbano, dos retratos familiares, da poesia lírica, da música intimista, das esculturas ornamentais. Para que isso se efetive urge destruir os museus, as academias de toda natureza, e combater o moralismo, o feminismo e toda vileza oportunista e utilitária.
O fascismo encampou (e se encantou com) esse tipo de proposta. A ideia de instituir uma nova ordem estética (Por que haveríamos de olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível?) sempre fascinou os que são contra a democracia, os que se julgam excluídos pelo Sistema, os que defendem os privilégios da burguesia, a masculinidade tóxica, os que querem criar o caos, os que empunham as picaretas, os machados, os martelos e destroem sem piedade o passado histórico.
Nós queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo – o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos libertários, as belas ideias pelas quais se morre e o desprezo pela mulher, defende o Manifesto Futurista, imaginando que, depois do fim do mundo, e a sua consequente "higienização", virá a redenção espiritual e política. Inclusive porque quer estabelecer "o lugar correto" para cada um dos atores nessa sociedade renovada. Caberá aos profetas do Apocalipse explicar esse dogma às multidões, declarando que, depois das mudanças, a corrupção será extinta, os pecados desaparecerão e a meritocracia dará a cada um o seu valor – religiosamente. Nenhuma surpresa: as ruas estão repletas de indivíduos que não conseguem encontrar o óbvio, apesar de tropeçarem nele a todo instante.
A contradição é uma das partes do motor que move o irracionalismo. Na tentativa de encontrar uma saída da mediocridade a que acreditam estar condenados, os desesperados se agarram em qualquer ideologia. E, sem refletir sobre o que isso pode afetar o coletivo, propõem outras regras para um velho jogo: Vocês querem, pois, desperdiçar todas as suas forças neste eterna e inútil admiração do passado, do qual vocês só podem sair fatalmente exaustos, diminuídos e pisados? Arauto da estética da destruição, o Manifesto Futurista finge estar livre das estruturas sócio-políticas vigentes. E segue em frente sem estabelecer qualquer tipo de correlação com o presente ou com o futuro.
Embora tenha mais de um século de existência, o Manifesto Futurista continua atual. Alguns ciclos nunca terminam. Entram em estado de hibernação. E, um dia, por algum motivo, voltam a assombrar. A autofagia é um vício inesgotável.
Filippo Tommaso Marinetti (1876 - 1944) |