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terça-feira, 19 de novembro de 2024

A ESTÉTICA, SEGUNDO O MANIFESTO FUTURISTA

 


A crise estética está instalada. Novas avaliações sobre alguns conceitos sociais, baseadas na fluidez da modernidade, forneceram um afastamento radical do pensamento clássico – aquele que pretendia imitar a beleza grega. Um dos primeiros sinais dessa mudança apareceu no Manifesto Futurista, de 1909, proposto por Filippo Tommaso Marinetti (1876 - 1944) e outros escritores italianos. Ao glorificar o progresso e as máquinas de guerra (... um automóvel rugidor, que corre sobre a metralha, é mais bonito que a Vitória de Samotrácia), instituíram um novo olhar sobre a arte e a sociedade.

A proposta dos futuristas determinou que a hostilidade acrescenta valor ao objeto artístico. Sem o mínimo constrangimento, declararam: Não há mais beleza, a não ser na luta. Nenhuma obra que não tenha um caráter agressivo pode ser uma obra-prima. Com esse pensamento impactante ficou estabelecida a eliminação sumária das paisagens pastoris, das cenas do cotidiano urbano, dos retratos familiares, da poesia lírica, da música intimista, das esculturas ornamentais. Para que isso se efetive urge destruir os museus, as academias de toda natureza, e combater o moralismo, o feminismo e toda vileza oportunista e utilitária.  

O fascismo encampou (e se encantou com) esse tipo de proposta. A ideia de instituir uma nova ordem estética (Por que haveríamos de olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível?) sempre fascinou os que são contra a democracia, os que se julgam excluídos pelo Sistema, os que defendem os privilégios da burguesia, a masculinidade tóxica, os que querem criar o caos, os que empunham as picaretas, os machados, os martelos e destroem sem piedade o passado histórico.

Nós queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo – o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos libertários, as belas ideias pelas quais se morre e o desprezo pela mulher, defende o Manifesto Futurista, imaginando que, depois do fim do mundo, e a sua consequente "higienização", virá a redenção espiritual e política. Inclusive porque quer estabelecer "o lugar correto" para cada um dos atores nessa sociedade renovada. Caberá aos profetas do Apocalipse explicar esse dogma às multidões, declarando que, depois das mudanças, a corrupção será extinta, os pecados desaparecerão e a meritocracia dará a cada um o seu valor – religiosamente. Nenhuma surpresa: as ruas estão repletas de indivíduos que não conseguem encontrar o óbvio, apesar de tropeçarem nele a todo instante.

A contradição é uma das partes do motor que move o irracionalismo. Na tentativa de encontrar uma saída da mediocridade a que acreditam estar condenados, os desesperados se agarram em qualquer ideologia. E, sem refletir sobre o que isso pode afetar o coletivo, propõem outras regras para um velho jogo: Vocês querem, pois, desperdiçar todas as suas forças neste eterna e inútil admiração do passado, do qual vocês só podem sair fatalmente exaustos, diminuídos e pisados? Arauto da estética da destruição, o Manifesto Futurista finge estar livre das estruturas sócio-políticas vigentes. E segue em frente sem estabelecer qualquer tipo de correlação com o presente ou com o futuro.

Embora tenha mais de um século de existência, o Manifesto Futurista continua atual. Alguns ciclos nunca terminam. Entram em estado de hibernação. E, um dia, por algum motivo, voltam a assombrar. A autofagia é um vício inesgotável.  

   

Filippo Tommaso Marinetti (1876 - 1944) 




quinta-feira, 14 de novembro de 2024

AINDA ESTOU AQUI

 


As tragédias se repetem como se fossem fatos novos porque poucos reconhecem a relação entre o que passou e o que está acontecendo. Recuperar alguns fatos soterrados nos escombros do esquecimento pode determinar que o futuro não será construído pela escuridão que acompanha a ignorância. Mas, contemporaneamente, essa tarefa não se mostra fácil. Os mecanismos de embotamento intelectual estão cada vez mais sofisticados. A multiplicação de mentiras através das redes sociais, a ausência de reflexão crítica, o negacionismo, o populismo político – são muitos os fatores que impedem que a coerência se estabeleça como um dos elementos de análise.

O tempo narrativo do filme Ainda estou aqui (Dir. Walter Moreira Salles Júnior, 2024), baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, está situado nos anos 70 do século XX. O trabalho da equipe de cenografia, que reconstruiu a casa e o ambiente daquele tempo  um mundo que só existe no passado  –, se aproxima da perfeição. 

A nota imperfeita está na repressão militar. Os sequestros de vários diplomatas estrangeiros serviram de desculpa para que o governo começasse uma série de prisões indiscriminadas, visando descobrir quem estava apoiando os grupos armados de resistência ao regime ditatorial. Várias pessoas desapareceram, depois que foram presas, interrogadas e torturadas. Entre elas, o ex-deputado federal Rubens Paiva.

A luta de Eunice (Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva) para tentar encontrar o marido (e sustentar os cinco filhos) constitui a espinha dorsal do filme. Com o desaparecimento de Rubens, o mundo familiar desmorona. Para complicar, Eunice e uma das filhas, Eliana, são levadas para prestar declarações. Os órgãos de repressão querem obter informações – que elas não podem fornecer. A menina é libertada no dia seguinte. Eunice permanece detida quase duas semanas.

O momento em que Eunice, depois que volta para casa e toma banho constitui uma das cenas mais emblemáticas. Ao limpar a sujeira corporal, quer expurgar o abjeto, os resíduos da barbárie. No entanto,  esse momento particular está longe da questão concreta: o horror patrocinado pelas forças armadas continuou até 1985. E a certidão de óbito de Rubens só foi concedida pelo governo em 1996.  

A presença do exército e da aeronáutica em todos os lugares, o enterro do cachorro (que foi atropelado), a interdição aos jogos de vôlei na praia, a falta de sensibilidade do gerente do banco, despedir a empregada, as cartas da filha que está em Londres, a mudança para São Paulo – o filme está repleto de pequenos acontecimentos. São esses fragmentos humanos, conduzidos com leveza e intensidade, que fogem do melodrama e, ao mesmo tempo, causam empatia no espectador. 

O filme também cumpre com as expectativas de mostrar a violência, embora alguns espectadores reclamem da ausência de ação (segundo o padrão do cinema estadunidense). Salvo uma ou outra cena, a escolha de um andamento narrativo lento contempla uma melhor definição dos personagens e das emoções. Nada do que está inscrito fora da esfera doméstica serve de dispersão. Por isso, o campo de visão proposto pelo roteiro está limitado ao núcleo familiar e à ausência   sempre presente.

A excelente atuação de Selton Melo e Fernanda Torres adiciona qualidade e segurança ao enredo – que termina com a imagem da magistral Fernanda Montenegro (sem emitir uma palavra, a tela iluminada por sua presença).   


Walter Moreira Salles Júnior






sexta-feira, 1 de novembro de 2024

SOBRE ÉDOUARD LOUIS

 


O escritor Édouard Louis (nascido Eddy Bellegueule), 32 anos, passou pelo Brasil como se fosse um furacão. Esteve em Paraty, Rio de Janeiro e São Paulo. Foi entrevistado pelo programa Roda Vida (Tv Cultura) e reverenciado em um artigo na revista Piauí nº 217, além de ser citado em reportagens da imprensa escrita, falada e televisionada. Enfim, não faltaram homenagens e publicidade.

Imediatamente surgiram experts na obra literária do francês. Difícil acreditar nesse fenômeno, exceto pelas exceções de sempre. Difícil acreditar que um escritor combativo – em tudo oposto ao bom mocismo que impera na literatura brasileira – tenha despertado a consciência crítica da crítica sem consciência que costuma vicejar em Pindorama. Talvez seja um desses acontecimentos ligados às projeções do desejo de louvar em terras outras o que aqui ninguém quer plantar. O popular complexo de vira-latas.    

Quem, entre os que aqui estão, costuma nomear os artífices do mal nos esquemas de poder? Quem utiliza a denuncia como uma ferramenta literária? Quem deixa de lado o medo e utiliza – de forma objetiva – o binômio política e literatura em uma narrativa? Meia dúzia, se não for menos. Normalmente, essas publicações estão escondidas no catálogo de editoras quase desconhecidas e raramente conseguem ser indicadas na mídia (que precisa atender os interesses de quem paga para perpetuar as relações de poder).

Ah, isso é um exagero, diriam os humilhados e ofendidos. E rebatem a questão dizendo que o fulano faz isso; o sicrano também. Sei... Pois o que se vê é que esses sujeitos são os reis das figuras de linguagem, uma metáfora aqui, uma elipse ali, uma alusão acolá. Ninguém atinge o cerne. Ninguém quer colocar em risco a carne, o sangue, os ossos. Então, o que produzem são aqueles dilemas da classe burguesa que sofre de amores não correspondidos e que emulam uns aos outros na tentativa de produzir um motocontínuo de sensibilidade e paixão.

Édouard Louis, ao contrário, contou, em O Fim de Eddy (São Paulo: TusQuets, 2018), o horror que é ser homossexual em um grupo social precário, violento e preconceituoso. Em História da Violência (São Paulo: TusQuets, 2020), narrou o dia em que foi estuprado. E nem nenhum momento omitiu as palavras necessárias para descrever a ignomínia. Em Quem Matou Meu Pai (São Paulo: Todavia, 2023), relacionou os últimos presidentes da república francesa, os primeiros-ministros e seus respectivos ministros das finanças. Foram esses políticos, defensores do neoliberalismo, que debilitaram a vida dos aposentados, levando-os à miserabilidade. 

Ah, mas ele não escreve com elegância, apontam os estetas literários. Sim, isso ele não faz. Mas, será isso importante em um escritor que adotou a tradição francesa do intelectual que interage com a sociedade, e que segue os passos de Jean-Paul Sartre, Albert Camus, Simone de Beauvoir, Roland Barthes, entre outros? Será que devemos deixar de lado algumas questões apenas porque a linguagem utilizada não é agradável? Será que ficamos incomodados quando Édouard Louis aponta para o autoritarismo e para a desigualdade econômica que reveste o capitalismo contemporâneo? Será que ficamos constrangidos quando encontramos alguém que aborda alguns problemas que não temos coragem de enfrentar?        

Tu le connais, lecteur, ce monstre délicat / – Hypocrite lecteur, – mon semblable, – mon frère!, escreveu Charles Baudelaire, como uma advertência para aqueles que preferem conviver com o monstro do que o combater. Claro, poucos tem o perfil de Perseu. É mais fácil desdenhar aqueles que decidiram enfrentar a Medusa.


terça-feira, 29 de outubro de 2024

QUANDO DEIXAMOS DE ENTENDER O MUNDO

 



Em algum momento deixamos de entender o mundo. Ninguém sabe exatamente quando, nem porquê. Mas aconteceu. O que parecia simples (um conjunto de regras sobre a natureza e que encontrava explicação no poder divino) de repente se tornou complexo, repleto de nuances e interpretações de difícil entendimento para as pessoas com pouca formação intelectual. Alguns sociólogos afirmam que essa ruptura está relacionada com o progresso das ciências, ocasião em que surgiram novas formas de percepção para os fenômenos físico-químicos. Quase todos os mistérios desapareceram. Uma fenda se abriu entre o antes e o depois. Além disso, o progresso tecnológico avançou de tal forma que criou uma ética ad hoc. Século após século, o mundo ficou diferente. E raramente foi para melhor.  

O chileno (nascido em Nederland) Benjamin Labatut analisa essas transformações em Como deixamos de entender o mundo (São Paulo: Todavia, 2022). O livro confirma o lugar comum de que existe uma linha muito tênue entre a genialidade e a loucura. Em muitos momentos se torna difícil distinguir quem está de um lado ou do outro. O que o livro informa é que o progresso da ciência depende mais dos malucos do que dos "normais". 

As áreas de concentração dessa turma são aquelas que se relacionam com a matemática, a física e a química. Os estudos produzidos por esses pesquisadores proporcionaram o surgimento de uma nova abordagem para as ciências: o mundo quântico. Nesse cenário, destacam-se Karl Schwarzschild, Shinichi Mochizuki, Alexander Grothendieck, Erwin Schrödinger, Werner Karl Heisenberg, Louis de Broglie, Niels Bohr e Albert Einstein, entre outros.  

Não foi um caminho fácil. Ao contrário, cada um desses pensadores encarava o objeto de estudo de uma forma peculiar e isso, além das dificuldades inerentes a um campo completamente inovador, exigiu uma disciplina que, muitas vezes, estava além das forças do pesquisador. Diante do abismo, Grothendieck e Mochizuki, por exemplo, preferiram caminhar na direção contrária – embora continuassem flertando com o monstro que não se cansava de querer dividir com eles a insanidade. 

Nos séculos XIX e XX, quando a violência dos humanos contra os humanos se tornou uma prática corriqueira, a indústria armamentista   através dos avanços tecnológicos – foi aprimorada. O que ninguém conseguiu perceber é que isso também decretou a morte da humanidade. A vida se tornou um produto descartável, sendo que a primeira guerra mundial foi o laboratório para que essas armas (no início, gases que usam compostos químicos nocivos à saúde) fossem utilizados contra o inimigo. Estranhamente, são esses experimentos genocidas  que permitiram que a ciência pudesse avançar na direção do uso racional dos elementos que constituem a natureza e de que forma é possível controlá-los.

Talvez tenha sido nesse momento que o entendimento do mundo se tornou nebuloso. As ilusões míticas, oriundas de um tempo ancestral, foram deixadas de lado e substituídas pelas formas inovadoras de abordagem das ciências. A técnica se tornou o elemento mais importante em todos os momentos de decisão. O passado perdeu a importância – porque abriga conhecimento inútil. O presente também não merece crédito. Somente o futuro, com suas promessas de destruição e de entendimento da totalidade, possuem algum valor. Mas, é preciso desfrutar dessas características avidamente, antes que o tempo as devore.

O livro termina com uma exposição romântica: o jardineiro noturno. Enquanto a natureza dorme, os indivíduos procuram se reconectar com os princípios vitais, com o pulsar do planeta. O progresso científico, em lugar de produzir alimentos e melhoria na qualidade de vida, multiplica os massacres e o extermínio humano. Ao constatar essa situação, a lucidez provavelmente se escondeu nas sombras – fugindo dos avanços de uma ciência que se alimenta da loucura.         




Benjamin Labatut

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

OLHAR O MUNDO ATRAVÉS DOS ÓCULOS LITERÁRIOS

 


Os óculos, na falta de melhor expressão, são uma das janelas para ver o mundo. Sou míope desde um tempo que não lembro mais. E não me reconheço sem essa ferramenta para olhar o longe. Por isso, e alguns outros motivos, o embaçar das lentes é um dos incômodos que mais me afeta no dia a dia.

Nas muitas vezes em que os óculos ficam pendurados na camisa, o horizonte se retrai. Uma enorme massa desfigurada se apresenta ao longe. Olho para baixo, para evitar tropeçar nos buracos que enfeiam as ruas da cidade. Caminhar está se tornando o mais perigoso dos deslocamentos urbanos.

O alcance visual desaparece. Lucina, personagem do romance Sangue no Olho (Lina Meruane. São Paulo: Cosac Naify, 2015), vai perdendo a visão aos poucos, uma tortura que vai se esparramando sem que apresente a mínima esperança de reversão. É uma perspectiva muito mais angustiante do que a metáfora política de Ensaio Sobre a Cegueira (José Saramago. São Paulo: Companhia das Letras, 1995), onde há (pedindo perdão pelo trocadilho ruim) uma luz no fim do túnel.

Jorge Luiz Borges viveu sem enxergar por 32 anos, mas nunca perdeu o costume de comprar livros. É o que relata o jovem Alberto Manguel (16 anos), funcionário da Livraria Pygmalion, em Buenos Aires. Em Com Borges (Belo Horizonte: Âyiné, 2018), Manguel relata: Um dia, após escolher alguns títulos, ele me convidou para visitá-lo e ler para ele à noite, caso eu não tivesse mais nada para fazer. Imagino que esse drama seja similar ao de Glauco Mattoso, que não enxerga faz algum tempo, mas continua compondo os seus poemas fesceninos com assiduidade.

Para João Cabral de Melo Neto, que foi perdendo, aos poucos, o contato com imagens e formas, a escuridão somada com a enxaqueca constante lhe tirou o gosto pela vida. A poesia cerebral, rigorosa na escolha de cada palavra, de cada verso, somente era possível na claridade.

Segundo a lenda grega, Homero era cego, recitava versos para poder sobreviver e a poesia era (literalmente) o seu alimento. John Milton teve glaucoma quando estava preso e ficou completamente cego em 1652 – parte de O Paraíso Perdido foi ditado para que amigos e empregados fossem registrando o poema, que foi publicado em 1667.

James Joyce se submeteu a várias cirurgias oftalmológicas, mas não foi possível atenuar as lesões oculares. Aldous Huxley foi vítima de uma doença rara aos 17 anos – na vida adulta compensou os danos com lentes de aumento. Luiz Vaz de Camões perdeu um dos olhos em uma batalha em África, mas isso não o impediu de produzir uma obra poética espetacular.

Entre os muitos medos que afligem os humanos, a opacidade ocular tem lugar de honra. Não me parece correto viver sem poder ler, sem poder desfrutar do espetáculo das cores. Todos aqueles que estão cientes de que a vida não é justa deveriam frequentar o consultório do oftalmologista com alguma frequência.

O uso de óculos possibilita uma pequena vantagem. A postura social de quem se movimenta pelas cidades exige que as pessoas se cumprimentem, sejam amáveis, finjam civilidade. Eu não sou fã desses procederes – principalmente em alguns casos específicos. Os óculos proporcionam uma desculpa fácil: Desculpe, não te vi.