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segunda-feira, 21 de julho de 2025

ESPINOSA

 


Quando um escritor falece, os seus personagens também morrem? Essa questão não tem resposta fácil. Em arte, nada se mostra ordenado com o rigor cartesiano ou com a coerência. Quando o leitor menos espera acontece a ressurreição de algum personagem. Há vários exemplos. O filho de Frank Herbert (1920-1986) decidiu continuar a saga Duna por mais alguns livros. David Lagergrantz publicou dois volumes da série Millennium, após a morte de Karl Stig-Erland Larsson, mais conhecido com Stieg Larsson (1954-2004). O divertidíssimo Triste, solitário e final, de Osvaldo Soriano (1954-1997), retirou das telas a dupla Stan Laurel e Oliver Hardy (o Gordo e o Magro) e os envolveu em peripécias muito diferentes das trapalhadas que eles protagonizaram no cinema.

Recentemente, Livia Garcia-Roza efetuou um experimento semelhante. Seu marido, Luiz Alfredo Garcia-Roza (1936-2020), escreveu doze romances policiais que se passam entre Copacabana e o Bairro Peixoto – no Rio de Janeiro. Em onze desses livros, o protagonista é o delegado Espinosa. A exceção é Berenice Procura (Companhia das Letras, 2005).

Como uma espécie celebração complicada (ou confusa) do luto, em Espinosa (Editora Faria e Silva, 2025), Livia fez o personagem voltar das profundidades que envolvem o esquecimento. Ao interagir com Livia (escritora e personagem), essa projeção do marido morto materializa-se na representação de sentimentos, desejos e experiências que deixaram de existir. Em outras palavras, ao trazer para o mundo real uma figura de papel, a escritora almeja (seja consciente, seja inconsciente) manter vivo um período emocional que se encerrou – mas que ela ainda não está preparada para aceitar.

A narrativa faz questão de pontuar que Espinosa gosta mais dos livros do que do exercício profissional. O delegado pouco vai à delegacia, passa a maior parte do tempo fazendo compras em sebos. Nos outros momentos ou está fazendo refeições em restaurantes ou frequentando bares ou cortejando Livia (a personagem). Os acontecimentos relativos ao cargo são descritos sem muita profundidade, como se fossem empecilhos ou uma moldura para o que realmente importa: um encontro entre a viúva e a projeção daquele que se apresenta como falta.

Desse modo transverso (travesso), o ato narrativo fornece sentido, direção e razão para que a escritura se pronuncie (em voz alta) entre as 112 páginas de um livro pequeno, porém intenso. É nesse amalgama entre os vivos e os mortos (o escritor e o personagem) que alguns membros da família são convocados a participar de uma história que deveria ser particular e que se tornou pública.

Personagens secundários como Andreia, Alice, Giovanna, Irma, Lucas, Nicolas, Esmeralda e Dodô poderiam ser descartados do enredo, pois não são significativos para o desenvolvimento da história – além de serem descritos da maneira mais ligeira possível, apenas para que o texto seja povoado por algo que não seja tão volátil quanto um personagem que deveria ter desaparecido quando da morte de seu criador.

Resumindo, falta substância em Espinosa, falta sabor. Sobra esse ajuste de contas entre uma escritora que resolveu usar um personagem de seu falecido marido para narrar o sofrimento causado pela ausência. O livro vale como uma sessão de autoanálise, mas fica devendo na espessura literária.  


Luiz Alfredo Garcia-Roza e Livia Garcia-Roza



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