Exemplares de A Morte do Pai, primeiro
volume dos seis que constituem a série autobiográfica Minha Luta, do
norueguês Karl Ove Knausgård, estavam expostos na vitrine da livraria.
Inevitável catálogo de dúvidas
geográficas e literárias. Noruega? Quem escreve na Noruega? Ao lado da pergunta indigesta,
a resposta trivial: difícil lembrar daqueles nomes com muitas consoantes e
poucas vogais que caracterizam os escritores nascidos na Escandinávia. Menos de
cinco minutos na Internet revelam que o mundo é pequeno e a ignorância, enorme. Ao
lado do teatrólogo Henrik Ibsen (1828-1906), autor de obras-primas como Casa de
Bonecas e O Inimigo do Povo, está Knut Hamsun (1859-1952), Prêmio Nobel de Literatura
de 1920, famoso por narrativas como Fome e Um Vagabundo Toca em Surdina –
textos ligeiramente fora de moda, mas de inegável qualidade. Há outros, muitos
outros, basta citar um exemplo recente, o romance O Meio-irmão, de Lars
Saabye Christensen, que obteve relativo sucesso nos círculos intelectuais menos
dependentes da lixeratura convencional.
Folheando A Morte do Pai, um pouco de alívio pelas recordações não entrarem em curto-circuito. Nos momentos de crise emocional, a união de palavras-chaves como morte e pai pode se transformar na fagulha que destrói o equilíbrio psíquico. Em alguns casos, além de gerar alucinações, produz avalanches de emoções. Há iniludível desconforto quando se torna necessário enfrentar a representação de uma história (em) comum. Menos traumático deve ser construir castelos de cartas.
Mesmo que pareça mórbido, viver em família implica em carregar cadáveres (reais, imaginários, simbólicos). E todos são pesados – insuportavelmente pesados. Poucos indivíduos possuem força para arrastar esse fardo com um mínimo de elegância. A estradinha cheia de buracos que conduz até as Moiras (Cloto tece o fio da vida; Láquesis cuida da extensão e do seu desenrolar; Átropos determina o fim da existência), também encaminha para a danação eterna. O inferno somos nós. Por pertença ou anátema. E a válvula de escape para o exterior desse lamaçal incompreensível está na invenção do inimigo. Transferir para o Outro a infração. Ou a inflamação. Sem escrúpulos, sem pânico.
Henrik Ibsen |
Verborrágicas. As 511 páginas de A Morte do Pai flertam com a dispersão narrativa. Leitores impacientes (acostumados com o ritmo frenético da literatura pragmática estadunidense, repleta de ação, diálogos e nenhuma reflexão) provavelmente não terão calma para atravessar esse mar muitas vezes excessivo, onde as palavras flutuam sem demonstrar o mínimo cansaço. O tom depressivo também não contribui para angariar alguma simpatia.
Knut Hamsun |
Usando o cadáver do pai como ponto de partida, Knausgård desenvolveu significativa coreografia em torno da morte. Uma cerimônia do adeus muito particular. Uma forma de tentar romper com antigas carências – que, mesmo depois da morte paterna, continuam apavorando, asfixiando. Difícil suportar (superar) a rejeição. Traumas e cicatrizes não podem ser corrigidos por psicólogo ou cirurgião plástico.
O fluxo da história, através de dezenas
de recuos e avanços no tempo narrativo, se alimenta de episódios desencontrados
da infância e da adolescência. Algumas recordações ampliam os graus de tensão
afetiva, comprovando que nem mesmo a distância temporal corrige o desacerto
familiar.
Talvez seja isso que Knausgård tenta esclarecer quando
menciona os filhos. Os seus e os de Yngve, o irmão. Misturando ternura,
lágrimas e um pouco de melancolia, ele esboça uma estrutura familiar diferente daquela
com que teve conviver antes de atingir a maturidade. Foi com horas de leituras e
futebol que sobreviveu à separação dos pais – e, consequentemente, à solidão. A
falta de segurança e autoestima – qualidades que sobram no irmão (modelo paterno
que tentou seguir durante algum tempo para preencher a lacuna psicológica) –
foram superadas pela couraça emocional.
Quando Knausgård recebe a notícia que o
pai foi encontrado morto, sentado em uma cadeira, não há surpresa. Alcoólatras
são suicidas em potencial. São indivíduos que costumam lançar os familiares nas
ruínas que constroem diariamente. Dor e sofrimento estão na contramão da
dignidade. Em Kristiansand, os dois irmãos (diante do cadáver paterno, diante
daquele que – de uma forma ou de outra – os havia amado e oprimido com igual
intensidade) contemplam a fragilidade da vida.
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