Siri Hustved expulsou os homens do
Paraíso. E resolveu puni-los (pelo pecado mortal de desejarem o que não lhes
era devido) transformando-os em sombras. Ou melhor, decidiu adotar um castigo
exemplar. Nas 192 páginas do romance O Verão Sem Homens, os machos são –
simbolicamente – castrados. No mundo masculino não há dor maior do que ser
impedido de se aproximar das mulheres.
Boris Izcovich, neurocientista e marido
de Mia Fredricksen, a narradora, trai a esposa. Pete (marido de Lola), além de
tratar mal a companheira, é um cara angustiado. Harry e Stefan estão mortos – e
isso, em diversos momentos, é imperdoável. Jack (marido de Beatrice, a irmã) é
descrito de forma condescendente como o mesmo bom e velho Jack. Um dos
sobrinhos recebe um comentário superficial e dispensável: Jonah na faculdade. O
outro, Ben, além de um pouco perdido na escola, aparece em cena como suspeito
de ser homossexual. Gardener (ex-marido de Abigail) voltou da guerra atormentado por pesadelos, acessos de fúria, surtos de bebedeiras terríveis. O
doutor P. somente é mencionado na primeira página. Simon é uma criança
recém-nascida. Zack, o namorado imaginário de Alice, não é citado em mais do
que duas ou três linhas do texto. A mãe da narradora desistiu de casar outra
vez: Não quero mais ter que cuidar de um homem. Alguns cientistas são apontados
como exemplos do pensamento machistas e de como manipulam o conhecimento
intelectual. O único homem (homem?) que merece um mínimo de consideração é o Sr. Ninguém (que talvez nem exista, em alguns momentos se parece com uma
projeção de Mia).
Siri Hustved |
Em compensação, o mundo feminino está
repleto de personagens fascinantes: Mia (a narradora), a doutora S.
(analista de Mia), Lola, as Cinco Cisnes (Georgiana, Regina, Peg, Abigail e a mãe
de Mia), as sete adolescentes que participam da oficina literária (Peyton,
Jessica, Ashley, Emma, Nikki, Joan e Alice). Até mesmo aquelas mulheres que interferem
pouco na ação narrativa, como Beatrice (Bea), Daisy e a Pausa, contribuem positivamente.
Mia, cinquenta e cinco anos, poeta e
filosofa, ao contar uma parte de sua história – em primeira pessoa –,
constantemente ignora o constructo ficcional em que está situada. Seguindo as
características de uma narrativa híbrida, sem muitas regras definidas, em
diversos momentos conversa diretamente com o narratário (aquele a quem a
narrativa é direcionada; em muitos casos é uma "entidade" diferente do leitor). Também embaralha o
texto com reflexões complexas, pensamentos emocionais (emocionados) e doses
industriais de citações intelectuais. Mas, ao contrário de construir o
aborrecimento, estabelece um fluxo narrativo repleto de poesia e bons sentimentos.
A história começa no momento em que Mia leva um monumental pé na bunda do marido. Trinta anos de casamento
interrompidos porque ele quer dar um tempo no relacionamento. Em outras
palavras, está tendo um caso com a Pausa (apelido escolhido por Mia para designar
a comborça). O mundo real se perde nas brumas do desespero. O colapso nervoso é
monumental. Depois de ser diagnosticada com um Transtorno Psicótico
Transitório, ela é internada em um hospital durante algum tempo. Ao receber
alta, resolve passar o verão perto de sua mãe – que mora em um condomínio para
idosos, em Bonden, Minnesota.
Lá, no interior do país, aluga uma casa
nos arredores da cidade e mergulha em uma jornada de descobertas sobre a vida, as
prioridades sociais e a crueldade feminina. O contato com as amigas da mãe, chamadas
de Cinco Cisnes, todas acima dos 80 anos, é rico em ensinamentos. As discussões propostas pelo clube
de leitura se somam aos bordados com desenhos eróticos, feitos por Abigail. São
leituras da perplexidade humana e que registram a grande complexidade
existencial. Os detalhes inscrevem o mundo concreto e, ao mesmo tempo, escondem
o que – aos olhos – não cabe alcançar.
Enquanto as mulheres idosas se integram
em um círculo de fraternidade, as mais jovens se preocupam – da maneira mais
predatória possível – em estabelecer os limites territoriais. A brincadeira com
Alice, tramada por todas as outras meninas que participam do curso de poesia,
ultrapassa os limites do bom senso. Embora não seja atribuição de Mia
restabelecer o equilíbrio social, somente através da intervenção é possível assegurar
um mínimo de justiça à situação. Resta dessa situação, o desvelamento da alma: Tosquiada
a intimidade, e vistos de uma distância considerável, somos todos personagens
cômicas, bufões farsesco e errantes através de nossas vidas, armando belas
confusões no caminho, mas, quando se chega mais perto, o ridículo rapidamente
se revela ora sórdido, ora trágico, ou meramente triste.
Simultaneamente, as nuances que nomeiam a linha de finitude da vida estão presente na narrativa. Em dado momento, como se
fosse um haicai, mãe e filha constatam que:
“É tão amarga.”
“O quê, mamãe?”
“A velhice.”
E enquanto a morte não se apresenta para
levar a todos para a vala comum do esquecimento, cabe ao leitor acompanhar as
divagações teóricas de Mia: (...) pensei por um momento no imaginário e no
real, na satisfação do desejo, na fantasia, nas histórias que contamos a nosso
próprio respeito. A ficção é um vasto território, a perder de vista, de
fronteiras difusas, que não se sabe ao certo onde começa e onde termina.
Mapeamos as ilusões por meio de acordos coletivos.
Na cena final de O Verão Sem Homens a
narradora abre uma porta para o entendimento. As mulheres são – sempre – mais
generosas do que os homens.
P.S.: A conexão entre a ficção e a brincadeira
que muitos chamam de "o" real aparece em uma frase trivial, dessas que passam despercebidas
na voracidade da leitura. A narradora deixa escapar, lá no meio do romance, Trata-se
simplesmente da música do acaso, como formulou um conhecido romancista
americano. Conhecido romancista americano? Música do acaso? Hum... Parte dessa diversão está em descobrir quais as afinidades eletivas que unem Siri
Hustvedt e – como se fosse uma espécie de verão ensolarado – Paul Auster.
Deixo o meu desejo de um Feliz Natal e de um 2014 sempre com criatividade!
ResponderExcluirUm abraço