Houve um tempo na história de minha
família em que as refeições eram uma forma de reunião afetiva. Mais do que
aproximar (ou afastar) pais e filhos, aqueles momentos ao redor da mesa serviam
para acertar as contas. Enquanto distribuía o arroz ou a carne no prato dos filhos, a mãe costumava
reclamar em voz alta. Não era fácil controlar quatro crianças. O pai
fulminava o(s) indisciplinado(s) com o olhar. Corretivos físicos faziam parte
do ritual. Enquanto alguns saboreavam a comida, outros descobriam que o
almoço estava impregnado de violência. Muitas vezes a comida era engolida com
lágrimas nos olhos.
A mãe estava sempre renovando o cardápio,
apesar do péssimo orçamento doméstico. Então, acompanhando o arroz e o feijão, tínhamos
frango assado, frango ensopado, guisados com batatas, bifes de fígado, buchada
(dobradinha), estrogonofe, almôndegas, macarrão com sardinha. Comida de pobre. Que era
devorada rapidamente. Seja porque era gostosa, seja porque a lentidão era
premiada com a impossibilidade de repetir o prato. E ninguém queria passar
fome. Em dias especiais, havia bife à milanesa e batatinha frita. Nos domingos, lasanha
(frango, apresuntado, queijo). Claro que não tínhamos toda essa abundância diariamente – mas alguma
coisa sempre estava lá.
Enormes pedaços de polenta frita,
recheados com queijo colonial, se transformavam em iguarias dignas das
constelações oferecidas pelo Guia Michelin (se, na época, soubéssemos o que era isso!).
Saladas eram raras. Não é comida, como costumávamos repetir, sonhando com pedaços enormes de carne ou coxas de frango. Mesmo assim, era costume ter à mesa refogados de repolho, couve, ervilha (bolinhas, como se dizia naquele tempo).
Saladas eram raras. Não é comida, como costumávamos repetir, sonhando com pedaços enormes de carne ou coxas de frango. Mesmo assim, era costume ter à mesa refogados de repolho, couve, ervilha (bolinhas, como se dizia naquele tempo).
![]() |
Arroz doce com canela |
A variedade de sobremesas estava acima de
quaisquer expectativas. Naqueles momentos, as doçuras da vida se multiplicavam. Ao lado das frutas da estação, o mundo se transformava em uma fábrica de surpresas para o paladar. Entre o sagu de
leite e o de vinho, estar vivo era viagem ao Paraíso. Quem é que conseguia dizer
não a um bom arroz doce? E as gelatinas coloridas? E as compotas
de maçã, ameixa, pera, laranja, pero-figo? Um de meus avôs adorava
pêssegos em calda com creme de leite – delícia.
Por razões que ignoro, não havia jantares
em minha casa. As refeições noturnas eram substituídas por café ou um copo de leite misturado com algum
achocolatado. De acordo com gostos individuais, o pão feito em casa (uma das sete maravilhas do mundo doméstico) era
acompanhado por manteiga, nata, requeijão, mel, geleias diversas, queijo e
mortadela.
![]() |
Rosca de coalhada |
No meio da tarde, havia uma refeição intermediária,
o café-com-mistura. Acontecia entre as dezesseis e as dezessete horas. Mas, nem
todos eram convidados. Visitas tinham prioridade. A xícara de café bem forte
(moído – socado – no pilão, lá nos fundos de casa) era acompanhada por uma fartura sem
fim: pão de ló, bolo de fubá, cuca, bolachinhas de maisena com leite
condensado, biscoitinhos de nata e sequilhos. Quem quiser escrever sobre a vida
alimentar de nossa família deve reservar um capítulo para tentar explicar a
importância das roscas de coalhada (feitas por Dona Henriqueta Arruda
Guimarães, minha ilustre avó) na mitologia gastronômica familiar. Pensando bem,
talvez um capítulo seja insuficiente.
![]() |
Doce de gila |
Devo ter esquecido alguma coisa. O quê?
Não sei. Como não gosto de canjica, cuscuz e de quirera, além de abóbora e beterraba, não quero falar sobre esses traumas. Não lembro de carne de porco e peixe. Provavelmente, comíamos porco, mas... perdi essa referência. Quanto ao peixe, essa é fácil: nenhum serrano quer (ainda hoje) morrer com uma espinha de peixe atravessada na garganta. Somente depois que comecei a perambular pelo mundo é que descobri o valor dos pescados.
Seria uma prova inequívoca de ingratidão ignorar aquelas manhãs, em Morrinhos, no interior da Coxilha Rica, quando bebíamos camargo para espantar o frio e despertar para um dia de diversões. Entro em afasia toda vez que me lembro das frutas de passarinho, que devorava como se estivesse morrendo de fome: uvaia, são João, amora, butiá, figo, guabiroba (uma espécie de araçá). Nesse mesmo pensamento está incluído um das maiores êxtases que já provei na minha vida: doce de gila. Nada – nada! – supera essa maravilha.
Seria uma prova inequívoca de ingratidão ignorar aquelas manhãs, em Morrinhos, no interior da Coxilha Rica, quando bebíamos camargo para espantar o frio e despertar para um dia de diversões. Entro em afasia toda vez que me lembro das frutas de passarinho, que devorava como se estivesse morrendo de fome: uvaia, são João, amora, butiá, figo, guabiroba (uma espécie de araçá). Nesse mesmo pensamento está incluído um das maiores êxtases que já provei na minha vida: doce de gila. Nada – nada! – supera essa maravilha.
Passados tantos anos, só me resta voltar
os olhos para o passado. E, através da imaginação, alimentar sabores que se
perderam no tempo. Ajudou nesse passeio sentimental e gastronômico a
leitura (prazerosa! muito prazerosa!) de Céu da Boca (lembranças de refeições
da infância), antologia de crônicas e depoimentos organizada por Edith M. Elek
(Editora Ágora, 2006).
Viajei no tempo. Senti o gosto e o perfume das iguarias. Romeu e Julieta...doce de gila ����
ResponderExcluirViajei no tempo. Senti o gosto e o cheiro das iguarias..Rpmeu e Julieta, doce de gila...saudades 🤗
ResponderExcluir