Uma vez estabelecido um estilo, poucos
são os escritores que arriscam e optam por mudanças. Em 1989, Kazuo Ishiguro,
escritor inglês de origem japonesa, ganhou o Booker Prize com um romance
emocionalmente contido, Os Vestígios do Dia (também traduzido como Os
Resíduos do Dia), que muitos leitores consideram como o mais inglês de todos os
romances ingleses. Descontando os exageros, a história de Stevens, um mordomo que
abre mão da individualidade em favor da satisfação dos patrões, foi adaptada ao
cinema (Dir. James Ivory, 1993), com Anthony Hopkins no papel principal. Em Não me
Abandone Jamais, também adaptado para o cinema (Dir. Mark Romanek, 2010), uma
instituição acolhe crianças para, em momento oportuno, as utilizar
como doadores de órgãos humanos. Entre a selvageria utilitarista e o lirismo
afetivo, há o desencanto e a impotência que somente a ficção cientifica consegue produzir. A música encantatória que une os cinco
contos que integram Noturnos provoca empatia e prazer nos leitores –
independente de juízo de valor que tenham sobre essa relação complicada que une
e separa a música e a literatura.
Todas essas narrativas (além de Uma
Pálida Visão dos Montes, Um Artista do Mundo Flutuante, O Inconsolável e Quando Éramos Órfãos) estão fixadas em
bases realistas sólidas. Mas, no último livro, O Gigante Enterrado, Ishiguro preferiu mudar radicalmente de direção. Decidiu atravessar as fronteiras que separam o mundo concreto do
universo das fábulas míticas. Alguns críticos literários não gostaram dessa
guinada. Preferiam que Ishiguro continuasse naquele chove, mas não molha da
linguagem sub-reptícia. Ou seja, escrever centenas de páginas para não dizer o
que deveria ser dito e – como complemento dessa negação – dizer o que deve ser
dito. Firulas, dribles, pouca ação, gol no último minuto de jogo. Há quem goste.
Misturando cavaleiros da Távola Redonda,
castelos com passagens secretas, dragões, ogros e valores imprescindíveis como ternura,
honra, coragem e amor, O Gigante Enterrado tem na memória o seu tema
principal. O casal de idosos, Axl e Beatrice, inicia uma jornada insensata. Querem
encontrar o filho, que – dizem – mora em uma aldeia distante uns dois dias de
caminhada. Muitos obstáculos se apresentam.
Chegar ao destino se mostra difícil. Como se tivessem entrado em um labirinto,
o casal de velhos não consegue encontrar a saída – que somente é revelada no
capítulo final.
Mais do que uma história angustiante,
repleta de momentos violentos, O Gigante Enterrado coloca em xeque inúmeras
questões fundamentais. Durante o governo do Rei Artur aconteceu a unificação da
Inglaterra. Através das armas, a paz foi imposta. Bretões e Saxões passaram a
viver como se fossem irmãos. Depois da morte de Artur, o povo continua anestesiado.
A razão dessa apatia está relacionada com um feitiço do Mago Merlin. Uma névoa,
expelida pelo dragão-fêmea Querig, cobre os quatro cantos do país. Ninguém
consegue recuperar o passado – embora ocorram, esporadicamente, agumas
lembranças fragmentadas. Esse desconforto, expresso na pergunta que Axl faz
para Beatrice, Mas você mesma não disse, princesa, que a nossa vida juntos é
como uma história com final feliz, não importa que curvas ela tenha feito no
caminho?, encontra contraponto e desconforto em outra declaração de Axl, quase
no final da narrativa, (...) prometa, princesa, que não vai esquecer o que
sente por mim no fundo do seu coração neste momento. Pois de que adianta uma
lembrança voltar da névoa se for para apagar outra?
Enquanto estão se dirigindo à aldeia do
filho, Axl e Beatrice encontram Sir Gawain (que se assemelha a Don Quixote), o
guerreiro Wistan e o menino Edwin, entre outros personagens. A vida de cada um deles está entrelaçada com um objetivo complicado: destruir Querig, a
dragão-fêmea. Muito sangue escorre pelo fio das espadas até que essa intenção
se concretize. Infelizmente, no momento em que os habitantes da Inglaterra
recuperam a memória (perdida, suprimida, distorcida) surgem novos problemas. Quem sabe o que virá quando homens eloquentes começarem a fazer velhos
rancores rimarem com um novo desejo de conquistar terras e poder?, pergunta
Axl.
Para essas questões não há resposta
suficiente. O continuum histórico está impedido de oferecer soluções ou garantias
de estabilidade. No máximo, projeta o futuro – que muitas vezes está longe de
qualquer expectativa triunfalista. Para o bem e para o mal, o despertar do
gigante enterrado pode acontecer a qualquer instante.
O Gigante Enterrado não deve ser lido
como – apenas – um conto de fadas sangrento.Tampouco deve ser considerado como
um entretenimento de primeira linha, similar aos livros de J. R. R. Tolkien e George R. R. Martin. Combinando o sabor dos épicos clássicos com a imaginação
literária, a narrativa possibilita significativas reflexões sobre a memória, a
amizade, o amor, a guerra e a morte.
Do ponto de vista estrutural, existe um
narrador inominado, onipresente e relativamente distante da ação narrativa, que
em alguns momentos parece ser intimo de Axl e Beatrice. O relato linear
(começo, meio e fim – nessa ordem) está repleto de elipses, momentos em que
alguns acontecimentos são suprimidos, para logo depois serem recuperados de
forma sintética. O foco narrativo está dividido em duas partes. Alternam-se
cenas com o casal e com o menino Edwin. Através desses dois olhares, ocorre o
desenvolvimento da tessitura literária. No entanto, a estabilidade ficcional sofre
alterações importantes em três momentos diferenciados. Em dois capítulos, Sir
Gawain oferece ao leitor poderosos monólogos interiores. No capítulo final, o
barqueiro (que talvez seja o narrador geral) assume a tarefa de concluir a
narrativa em depoimento de primeira pessoa.
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