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quinta-feira, 15 de outubro de 2015

O GIGANTE ENTERRADO

Uma vez estabelecido um estilo, poucos são os escritores que arriscam e optam por mudanças. Em 1989, Kazuo Ishiguro, escritor inglês de origem japonesa, ganhou o Booker Prize com um romance emocionalmente contido, Os Vestígios do Dia (também traduzido como Os Resíduos do Dia), que muitos leitores consideram como o mais inglês de todos os romances ingleses. Descontando os exageros, a história de Stevens, um mordomo que abre mão da individualidade em favor da satisfação dos patrões, foi adaptada ao cinema (Dir. James Ivory, 1993), com Anthony Hopkins no papel principal. Em Não me Abandone Jamais, também adaptado para o cinema (Dir. Mark Romanek, 2010), uma instituição acolhe crianças para, em momento oportuno, as utilizar como doadores de órgãos humanos. Entre a selvageria utilitarista e o lirismo afetivo, há o desencanto e a impotência que somente a ficção cientifica consegue produzir. A música encantatória que une os cinco contos que integram Noturnos provoca empatia e prazer nos leitores – independente de juízo de valor que tenham sobre essa relação complicada que une e separa a música e a literatura.

Todas essas narrativas (além de Uma Pálida Visão dos Montes, Um Artista do Mundo Flutuante, O Inconsolável e Quando Éramos Órfãos) estão fixadas em bases realistas sólidas. Mas, no último livro, O Gigante Enterrado, Ishiguro preferiu mudar radicalmente de direção. Decidiu atravessar as fronteiras que separam o mundo concreto do universo das fábulas míticas. Alguns críticos literários não gostaram dessa guinada. Preferiam que Ishiguro continuasse naquele chove, mas não molha da linguagem sub-reptícia. Ou seja, escrever centenas de páginas para não dizer o que deveria ser dito e – como complemento dessa negação – dizer o que deve ser dito. Firulas, dribles, pouca ação, gol no último minuto de jogo. Há quem goste.

Misturando cavaleiros da Távola Redonda, castelos com passagens secretas, dragões, ogros e valores imprescindíveis como ternura, honra, coragem e amor, O Gigante Enterrado tem na memória o seu tema principal. O casal de idosos, Axl e Beatrice, inicia uma jornada insensata. Querem encontrar o filho, que – dizem – mora em uma aldeia distante uns dois dias de caminhada. Muitos obstáculos se apresentam. Chegar ao destino se mostra difícil. Como se tivessem entrado em um labirinto, o casal de velhos não consegue encontrar a saída – que somente é revelada no capítulo final.

Mais do que uma história angustiante, repleta de momentos violentos, O Gigante Enterrado coloca em xeque inúmeras questões fundamentais. Durante o governo do Rei Artur aconteceu a unificação da Inglaterra. Através das armas, a paz foi imposta. Bretões e Saxões passaram a viver como se fossem irmãos. Depois da morte de Artur, o povo continua anestesiado. A razão dessa apatia está relacionada com um feitiço do Mago Merlin. Uma névoa, expelida pelo dragão-fêmea Querig, cobre os quatro cantos do país. Ninguém consegue recuperar o passado – embora ocorram, esporadicamente, agumas lembranças fragmentadas. Esse desconforto, expresso na pergunta que Axl faz para Beatrice, Mas você mesma não disse, princesa, que a nossa vida juntos é como uma história com final feliz, não importa que curvas ela tenha feito no caminho?, encontra contraponto e desconforto em outra declaração de Axl, quase no final da narrativa, (...) prometa, princesa, que não vai esquecer o que sente por mim no fundo do seu coração neste momento. Pois de que adianta uma lembrança voltar da névoa se for para apagar outra?

Enquanto estão se dirigindo à aldeia do filho, Axl e Beatrice encontram Sir Gawain (que se assemelha a Don Quixote), o guerreiro Wistan e o menino Edwin, entre outros personagens. A vida de cada um deles está entrelaçada com um objetivo complicado: destruir Querig, a dragão-fêmea. Muito sangue escorre pelo fio das espadas até que essa intenção se concretize. Infelizmente, no momento em que os habitantes da Inglaterra recuperam a memória (perdida, suprimida, distorcida) surgem novos problemas. Quem sabe o que virá quando homens eloquentes começarem a fazer velhos rancores rimarem com um novo desejo de conquistar terras e poder?, pergunta Axl.

Para essas questões não há resposta suficiente. O continuum histórico está impedido de oferecer soluções ou garantias de estabilidade. No máximo, projeta o futuro – que muitas vezes está longe de qualquer expectativa triunfalista. Para o bem e para o mal, o despertar do gigante enterrado pode acontecer a qualquer instante.

O Gigante Enterrado não deve ser lido como – apenas – um conto de fadas sangrento.Tampouco deve ser considerado como um entretenimento de primeira linha, similar aos livros de J. R. R. Tolkien e George R. R. Martin. Combinando o sabor dos épicos clássicos com a imaginação literária, a narrativa possibilita significativas reflexões sobre a memória, a amizade, o amor, a guerra e a morte.


Do ponto de vista estrutural, existe um narrador inominado, onipresente e relativamente distante da ação narrativa, que em alguns momentos parece ser intimo de Axl e Beatrice. O relato linear (começo, meio e fim – nessa ordem) está repleto de elipses, momentos em que alguns acontecimentos são suprimidos, para logo depois serem recuperados de forma sintética. O foco narrativo está dividido em duas partes. Alternam-se cenas com o casal e com o menino Edwin. Através desses dois olhares, ocorre o desenvolvimento da tessitura literária. No entanto, a estabilidade ficcional sofre alterações importantes em três momentos diferenciados. Em dois capítulos, Sir Gawain oferece ao leitor poderosos monólogos interiores. No capítulo final, o barqueiro (que talvez seja o narrador geral) assume a tarefa de concluir a narrativa em depoimento de primeira pessoa.

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