Em alguns casos, a ficção supera o
“real” (seja lá o que isso for). Esse pensamento se torna inevitável durante a
leitura de Stoner, romance escrito por John Edward Williams, em 1965, e que,
salvo engano, somente teve uma edição no Brasil em 2015. Esses 50 anos de
defasagem não fizeram mal ao texto. Ao contrário, o livro continua genial – e
com sólida base na realidade contemporânea.
A história de William Stoner (1891-1955) fornece visibilidade aos
ideais que motivam todos aqueles que escolhem (escolheram, escolherão) seguir a
carreira docente universitária. Ao mesmo tempo, o romance procura sinalizar para uma
serie de armadilhas que estão espalhadas no interior de cada um dos
departamentos que compõem as instituições escolares. As disputas internas são
violentas, representação grotesca da guerra bárbara que indivíduos com “instrução
superior” deveriam evitar – mas, que, ao contrário, são estimuladas por grupos
ambiciosos. Em síntese: somente os ingênuos e os mal-intencionados são capazes
de negar que os caminhos profissionais estão contaminados por diversos interesses
(vaidade, poder, dinheiro – não necessariamente nessa ordem).
A literatura atingiu Stoner aos 19 anos,
quando ele estava cursando ciências agrárias, na Universidade do Missouri. Foi o
estranhamento da proposta criativa que o fez mudar o curso de sua vida. A mente
inquieta do jovem não conseguiu resistir ao desafio intelectual. Ao contrário da
agricultura, onde as regras básicas são praticamente imutáveis, a literatura
trabalha com o contraste entre certezas e dúvidas. Mais dúvidas do que certezas.
Diante dos livros, tomou consciência de si mesmo de um jeito que nunca lhe
ocorrera antes. Superando as dificuldades de uma história pessoal sem
significativa formação escolar, concluiu as disciplinas que lhe forneceram um
diploma em Literatura Inglesa. O mestrado e o doutorado transcorreram de forma
natural – sob a supervisão do professor Archer Sloane, de quem Stoner era discípulo.
Convidado a lecionar, aceitou. Foi o seu único emprego na vida. Somente deixou
as salas de aula quando ficou doente. De maneira superficial, poderia se dizer
que nada de mais significativo aconteceu na vida de William Stoner.
John Edward Williams (1922-1994) |
Evidentemente, essa descrição está
repleta de omissões. A mais importante se refere à vida privada. Nas minúcias que
misturam o ser e o estar no mundo, a vida de um professor que raras vezes foi
valorizado de forma adequada se desenvolve em compasso de espera e solidão. Em
diversos momentos, ele lembra um de meus professores ficcionais favoritos,
Andrew Crocker-Harris (interpretado por Albert Finney), protagonista do filme Nunca te Amei (The Browning Version.
Dir. Mike Figgs, 1994), que, ao olhar para trás, faz um balanço do tempo em que
esteve em sala de aula. Não é uma visão otimista. Predomina a sensação de que o
desenrolar de sua vida transcorreu de modo injusto.
Stoner se apaixonou quatro vezes na
vida. A primeira vez foi pela literatura. A segunda, quando conheceu Edith
Elaine Bostwick, com quem se casou. A felicidade proposta pelo casamento desapareceu rapidamente. A esposa detestava sexo e, depois de um tempo, deixou
de gostar do marido. O terceiro amor de Stoner foi por Grace, sua única filha.
Edith tudo fez para dissolver essa ternura. Através de artifícios e ocupações
sociais manteve a filha distante (física e afetiva) do pai. Incapaz de reagir à
crueldade da esposa, Stoner viu a filha se transformar em um espectro. Na
primeira oportunidade, para fugir do clima opressivo criado pela mãe, Grace
ficou grávida. Quando o marido se alistou para combater na II Guerra Mundial,
tornou-se alcoólatra. O último amor de Stoner surgiu quase por acaso. Katherine
Driscoll foi sua aluna em um seminário. A união se resolveu de forma quase que
natural – e, para perplexidade do leitor, abençoada por Edith, que assim se
livrava da presença do marido.
Stoner cometeu dois erros significativos
em sua vida profissional. O primeiro, compreensível, foi reprovar um aluno,
Charles Walker, orientado pelo professor Hollis Lomax. O segundo, fruto da
ingenuidade profissional, rejeitar a chefia do departamento – quando essa
oportunidade surgiu. O que se seguiu não pode ser descrito sem tristeza. Lomax
assume o departamento e transforma a vida funcional de Stoner em uma sucursal
do inferno. Estoico, ele jamais reclamou do destino. Da melhor maneira possível, sem medir esforços, assumiu as tarefas mais medíocres, as piores turmas, os horários que ninguém
queria, e nunca se incomodou com os visíveis impedimentos para que fosse
promovido. Até de Katherine precisou desistir, quando
Lomax – reclamando a moral e os bons costumes – denunciou a indecência
da ligação amorosa.
Foram anos de sofrimento, suportando a
fúria da esposa e a canalhice de Lomax. Stoner somente consegue algum sossego
quando é tarde demais. Qualquer coisa perde a importância diante da proximidade
da morte.
Stoner, romance escrito de forma
linear, em tom monocórdio, com um narrador onisciente e onipresente, vai
envolvendo o leitor a cada página. Impossível resistir ao charme de
William Stoner, um homem comum, muitas vezes simplório, e que ama a literatura
com fé religiosa.
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