O romance Norte e Sul, da britânica
Elizabeth Gaskel (pseudônimo literário de Elizabeth Cleghorn Stevenson,
1837-1901), publicado em livro originalmente em 1855, e que, salvo engano,
somente agora, um século e meio depois, recebeu uma edição brasileira, tem sido
classificado por alguns desavisados como semelhante ao enredo de Orgulho e
Preconceito, de Jane Austen, com a vantagem de enfocar politicamente o período
de implantação da industrialização britânica. Essa tese
não possui fundamento. E se revela absurda em diversos momentos. De qualquer
maneira, insinuar qualquer semelhança entre Gaskel e Austen ou entre Margaret
Hale, protagonista de Norte e Sul, e Elizabeth (Lizzy) Bennet, protagonista
de Orgulho e Preconceito, mais do que um ridículo golpe publicitário,
significa negar as várias qualidades dos romances de Elizabeth Gaskel.
Ler Norte e Sul exige um considerável
esforço. São 744 páginas. A estrutura narrativa está sedimentada na vida e nos
sentimentos de Margaret Hale. E a isso deve se acrescer que a mistura de
romantismo com o realismo incipiente não obtém resultado muito satisfatório
(para os padrões atuais), mas, provavelmente, deve ter entusiasmado os leitores
da época em que o romance foi publicado. Com uma formação educacional “superior”,
obtida no convívio com a sociedade londrina, Margaret precisa se adaptar ao
ambiente hostil e quase selvagem de Milton-North (cidade fictícia,
provavelmente inspirada por Manchester).
Elizabeth Cleghorn Stevenson (1837-1901) |
Parte do romance se concentra no choque
entre o intelectualismo bucólico (sul) e o capitalismo industrial (norte).
Nessa discussão são misturados diversos ingredientes, nem todos compatíveis:
ética, moral anglicana, idealismo, condições deploráveis de trabalho, forças
sindicais, disparidade socioeconômicas, fome, morte. E, claro, o amor – que,
depois de ser negado mil vezes, somente se torna palpável no desfecho da
narrativa.
De acordo com o narrador onisciente e
onipresente de Norte e Sul, um romance linear (daqueles que possuem início,
meio e fim, nesta ordem), (...) a nuvem nunca surge justo naquela parte do
horizonte para a qual estamos olhando. Seja no sentido metafórico, ou não, a
“nuvem” – dessas que anunciam tempestades, enxurradas e lamaçais – não é tão
assustadora quanto parece. Evidentemente, inúmeros obstáculos precisam ser
ultrapassados. Somente há algum alívio quando as complicações se esgotam – e
isso demora centenas de páginas, muito mais do que o necessário.
Nesse sentido, cabe lembrar que, no
romance inglês clássico, muitas questões ficam nas entrelinhas. Em diversos
momentos, o subentendido adquire significado superior às palavras que escorrem
pelo papel contando uma história (que parece não ter nenhuma importância –
exceto alertar que muitos elementos permanecem escondidos).
Uma dificuldade significativa do livro
está na falta de personagens para interagir com os dramas de Margaret – embora
todas as situações-chave sejam resolvidas por encaixe. O excesso de discurso
interior torna o texto quase indigesto. Sobram reflexões sobre os
acontecimentos, uma espécie de falar para si mesmo, como se estivesse colocando
em ordem os pensamentos, como se houvesse interlocutores para tantas dúvidas e
lamentações. Se ela pudesse conversar com alguma amiga ou com o pai, provavelmente
haveria mais ação dramática e menos blábláblá. Margaret Hale, moradora de Milton-North,
se transforma em uma mulher solitária, movida pelo altruísmo, interessada nas
dificuldades alheias (ali ela havia encontrado um interesse humano),e absolutamente
incapaz de resolver adequadamente as próprias dificuldades.
Quando a mãe de John Thornton diz que Hale
vem de uma região aristocrática onde, se as lendas são verdadeiras, os maridos
ricos são considerados troféus, mostra um interessante vaticínio sobre o
futuro do filho. Embora esteja errada quanto aos interesses econômicos de
Margaret, acerta em relação a um possível envolvimento amoroso entre os dois –
algo que a desagrada, pois, como compete à classe média em ascensão, almeja
algo “melhor” para seu primogênito. Ou seja, quer o filho se case com uma
mulher de linhagem nobre e que, submissa, tenha como preocupações fundamentais
cuidar dos (possíveis) filhos e jamais causar embaraços sociais para a família.
Margaret não coincide com esse perfil.
John também entende que existem
obstáculos – além de tudo, ele foi rejeitado quando fez a primeira proposta! Em
determinado momento, fica constrangido: Suas faces arderam ao se lembrar da
maneira arrogantecom que ela manifestou sua objeção ao comércio, quando se
conheceram, porque, se por um lado, com frequência, ele levava ao engano de
fazer que bens que eram inferiores pudessem passar por superiores, por outro
lado levava a assumir crédito por uma riqueza e por recursos que não tinha
posse. Falta-lhe inteligência emocional para entender os sentimentos de uma mulher que,
politicamente,está avant la lettre. Margaret se preocupa com o ser humano e
despreza todos aqueles que somente estão interessados com a obtenção do lucro.
Norte e Sul, no contexto realista, alerta
o leitor para um fato básico: o dinheiro nunca pode ser considerado suficiente
para proporcionar a felicidade. Simultaneamente, movido pelo romantismo,
inspira a esperança de que o amor supera todos os bloqueios. Construído como
uma discussão política ficcional sobre os primórdios da industrialização na
Inglaterra, o romance apresenta um bom painel histórico e um personagem –
Margaret – que se recusa a aceitar que homens e mulheres sejam explorados pelo
capitalismo predatório.
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