O
caudal romanesco Tetralogia Napolitana (integrado pelos volumes A Amiga
Genial, História do Novo Sobrenome, História de Quem Foge e de Quem Fica e História da Menina Perdida), escrito pela italiana Elena Ferrante, conta a
história da amizade entre Rafaella (Lila, Lina) Cerullo e Elena (Lenu) Greco.
Nascidas em um bairro de classe econômica precária (em Nápoles, Itália), as duas mulheres enfrentam o mundo – cada uma a sua maneira. Lila é
colérica, pouco disposta a fazer concessões, extremamente inteligente. Lenu é
cordata, muitas vezes insegura, intelectualmente esforçada. De alguma maneira,
na infância e na adolescência, a primeira domina a segunda.
Em
determinado momento, embora continuem unidas, as amigas se separam. Lila
prefere – opondo-se aos conselhos que recebe – fazer um casamento de
conveniência com um sujeito que todos sabem ser um mau caráter. Lenu – acreditando
que encontrou o melhor caminho para fugir da pobreza – vai para a
universidade. São escolhas divergentes e que produzem feridas que jamais
cicatrizarão.
O
terceiro volume dessa saga, História de Quem Foge e de Quem Fica, focaliza
uma pedaço da vida adulta das duas mulheres. Lila continua administrando a vida
de forma intempestiva. Embora tenha “comido o pão que o diabo amassou”, após se
separar do marido, conseguiu sobreviver. Simultaneamente, manteve o orgulho e
os ideais em que acredita (com direito a um flerte com o Partido Comunista
Italiano). O mesmo não se pode dizer de Lenu, que não encontrou a felicidade na
carreira universitária, no casamento ou no relativo sucesso do romance que
escreveu.
Na
medida em que o universo social, político e afetivo das duas mulheres se
expande, a trama adquire novos contornos. Surgem e desaparecem vários
personagens – cada um multiplicando as complicações. O clima político,
refletido nas lutas (físicas) entre comunistas e fascistas, revela uma Itália
fragmentada, sem saber se apoia as lutas sociais ou se regride à Idade Média. Enquanto
Lila consegue visualizar objetivamente o microcosmo opressor em que vive (apesar
de não encontrar uma forma de superá-lo), Lenu conduz seus interesses para questões
intelectuais alienantes. Independente dos óbvios problemas que existem entre
essas duas formas – complementares – de enfrentar o mundo concreto, é possível
perceber que o “zeitgest” está repleto de nuances e que jamais pode ser
reduzido a esquemas binários (verdade e mentira, certo ou errado, razão e
sentimento).
A
maternidade também se revela em contraste. Enquanto Lila carrega Gennaro para
lá e para cá, sem tentar negar que o menino integra uma parte de sua vida
atribulada, o nascimento das filhas de Lenu (Adele e Elsa) catalisa uma série
interminável de crises. A maternidade em Lila serve para diminuir o egoísmo e
construir uma consciência coletiva; a maternidade em Lenu concretiza o colapso
afetivo e profissional. Nos dois casos, o adensamento da substância humana
supera a superficialidade dos arranjos sociais.
Além disso, é através do espelho literário que se visualiza a condição feminina. Inumeráveis exemplos são projetados na Tetralogia Napolitana. Como uma herança maldita, transmitida pelas mães às filhas, cabe às mulheres sobreviver em um mundo hostil, onde os homens não se constrangem em agredir, ferir, dominar, destruir. Tanto Lila quanto Lenu querem romper com esse círculo vicioso – a questão fundamental está no método com que cada uma delas escolhe para derrubar o muro da opressão.
Além disso, é através do espelho literário que se visualiza a condição feminina. Inumeráveis exemplos são projetados na Tetralogia Napolitana. Como uma herança maldita, transmitida pelas mães às filhas, cabe às mulheres sobreviver em um mundo hostil, onde os homens não se constrangem em agredir, ferir, dominar, destruir. Tanto Lila quanto Lenu querem romper com esse círculo vicioso – a questão fundamental está no método com que cada uma delas escolhe para derrubar o muro da opressão.
Nápoles |
É o exame microscópico das diferenças que existem entre Lila e Lenu que estabelece
o ponto mais alto da prosa fluida e estonteante de Elsa Ferrante. Seus livros foram
escritos para ser devorados de forma ininterrupta. São leituras guiadas pela
ansiedade de descobrir o que está escrito na página seguinte. Mas, sobretudo,
são textos iluminados pela presença de Rafaella (Lila, Lina) Cerullo,
provavelmente uma das personagens femininas mais interessantes da literatura
contemporânea.
– Vocês professores insistem tanto no
estudo porque é com ele que ganham a vida, mas estudar não serve para nada, nem
melhora as pessoas, ao contrário, torna-as mais cruéis.
– Elena ficou mais cruel?
– Não, ela não.
– E por quê?
Lila meteu o gorro de lã na cabeça do filho:
– Desde pequenas fizemos um pacto: a cruel sou eu.
Entre
dramas e tragédias – Lila em Nápoles, Lenu em Florença –, encontros e
desencontros, pobreza e riqueza, maridos e amantes, afeto e violência, descobertas
e segredos, nada prepara o leitor para o atordoamento. Não há adjetivo mais
exato do que esse para expressar os acontecimentos narrados nas ultimas vinte ou
trinta páginas de História de Quem Foge e de Quem Fica. A racionalidade e a
segurança, elementos que pareciam ser estruturantes no livro, são substituídas pela
inversão de papeis entre Lila e Lenu. A linha reta e o andamento seguro se
transformam em algo improvável e confuso. Ou melhor, em algo surpreendente.
Em
síntese: toda essa complicação tem um significado muito simples: a leitura do
quarto volume da tetralogia (História da Menina Perdida) é necessária – e
urgente.
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