Muitos escritores contemporâneos
procuram transmitir aos seus leitores um conjunto de experiências pessoais. São
narrativas que reúnem trechos autobiográficos e diversos conselhos sobre a arte
literária. Dependendo da habilidade do autor e do marketing empregado pela
editora, esses livros costumam se destacar na lista dos mais vendidos durante
algum tempo. Depois, como compete ao fluxo das mercadorias, são esquecidos.
Quer dizer, são substituídos. Faz parte do show. Ou das regras comerciais.
Romancista como Vocação, de Haruki
Murakami, segue esse propósito – e, possivelmente, terá uma vida útil idêntica
a de outros livros similares. Inclusive porque não acrescenta elementos
significativos para a teoria da literatura. Também não contém ensinamentos capazes
de despertar a vocação em novos escritores.
Como Murakami – quando decidiu publicar o livro – não estabeleceu como
meta esses dois propósitos, seu objetivo se mostra mais singular, menos
ambicioso. Ao comentar alguns dos episódios que se destacaram na sua trajetória
pelo mundo literário, Murakami adotou o velho estilo “chove, mas não
molha”.
Isso ele faz e de forma coloquial, como
se estivesse conversando com o leitor. Para alcançar esse efeito, Murakami não
economiza no uso de metáforas, referências musicais (jazz, rock, clássicos) e
esportivas (beisebol). Os interstícios são preenchidos por várias historietas
complementares. Nesse último caso, em alguns momentos há reticências. Ele não se
detém nas razões que o fizeram se casar antes dos 20 anos e, consequentemente, quase
abandonar a universidade – levou sete anos para concluir o curso de
letras. Em compensação, não poupa
palavras para destacar que foi dono de um bar de jazz em Tóquio. Atrás do
balcão, nos momentos de descanso de um trabalho árduo, ele pode ler muito e
escutar milhares de discos. A forma detalhada com que descreve esse período da
vida (e que antecede a publicação de seu primeiro livro) revela que esteve mais
próximo da felicidade do que em todo o período que passou na universidade.
Murakami começou a escrever romances aos
trinta anos, em 1978. Ele estava assistindo uma partida de baseball, quando teve
um insight – e que deflagrou uma carreira literária composta por diversos
romances de indiscutível qualidade: O som agradável do taco atingindo a bola
ecoou em todo o estádio. Ouviram-se alguns aplausos. Nesse momento pensei
subitamente, sem nenhum contexto e sem nenhum fundamento: É, talvez eu também
possa escrever romances. Surpreendentemente, Ouça a Canção do Vento – que
foi escrito durante as madrugadas, na mesa da cozinha – ganhou um prêmio
oferecido pela revista Gunzô. Foi esse primeiro sucesso que o impulsionou para
uma carreira de romancista.
O método de trabalho de Murakami é
rígido. Próximo do mecânico. E abrange, além da disciplina espartana, horas de
exercícios físicos – elemento explorado no livro Do que Eu Falo Quando Eu Falo
de Corrida. Sem querer gerar controvérsias, sua visão do mundo literário está muito
distante do estereótipo romântico do escritor que atravessa as madrugadas em
bares ou em boates de quinta categoria, se encharcando em álcool, sexo e drogas
(não necessariamente nessa ordem).
Em um dos momentos mais interessantes do
livro, Murakami faz duas declarações destinadas a causar turbulência no mundo
literário. Depois de afirmar que escrever romances não é um trabalho
apropriado para pessoas muito inteligentes e de mente afiada, ele ampliou o
debate emitindo outra declaração complicada: Em geral os críticos literários
são mais inteligentes e perspicazes do que os romancistas. Independente da
correção dos conceitos, poucas pessoas que trabalham com literatura
concordam com esse tipo de posicionamento ambíguo. A vaidade dos escritores (que muitas vezes
odeiam os críticos) e a falta de humildade dos críticos (que muitas vezes
detestam os escritores) costumam entrar em colisão, independente da qualidade
do material literário produzido pelas duas partes. Além disso, Murakami quase
que implora, em alguns trechos, por um minuto de atenção dos críticos
literários (principalmente os japoneses).
O ponto alto do livro está no capítulo
VIII (Sobre escolas), onde desmistifica o idealismo que envolve a vida escolar.
Murakami declara com todas as letras que a sua experiência durante esse período
foi insípida: Eu não levava os estudos a sério por um motivo bem simples:
primeiro, achava muito chato. Estudar não despertava o meu interesse, ou
melhor, havia muitas outras coisas mais divertidas do que isso, como ler,
escutar música, assistir filmes, nadar no mar, jogar beisebol, brincar com os
gatos... depois de crescer mais um pouco, varava a noite jogando mahjong com os
amigos, saí com garotas... essas coisas. Comparado com isso, estuda era bem
chato.
Resumindo: Romancista como Vocação é
um livro mediano, sem muitos atrativos – exceto, claro, se você for um fã
ardoroso de Haruki Murakami.
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