Páginas

segunda-feira, 22 de maio de 2017

CONVERSAS DE BOTEQUIM

O mundo pode ser visualizado a partir da mesa do botequim. Basta a cerveja estar gelada e os preços serem acessíveis. Um prato com tira-gostos também ajuda nas elucubrações filosóficas. Evidentemente, a palavra elucubrações jamais deve ser pronunciada nesse tipo de ambiente. Em contrapartida, pode-se falar sobre qualquer outro assunto, incluindo sexo, drogas e samba, o resultado do jogo do bicho, a previsão do tempo e os tropeços afetivos.

Conversas de Botequim, livro organizado por Henrique Rodrigues e Marcelo Moutinho, reúne vinte contos baseados nas músicas de Noel Rosa. Em outras palavras, vinte histórias de amor que terminaram mal. Nenhuma novidade. Há quem sustente a tese (controversa) de que a felicidade não combina com a literatura, a música e as artes em geral. Em contrapartida, os desastres (sejam dramas, sejam comédias) são festejados e descritos em toneladas de papel e hectolitros de tinta ou em orquestrados lamentos. O Brasil é o reino da dor-de-corno (no imaginário popular corre a ideia de que quem não é corno, um dia será).

Organizado em ordem alfabética pelo prenome dos autores, o livro inicia com Aldir Blanc e termina com Veronica Stigger. No meio da lista estão alguns dos escritores que integram o time principal da literatura brasileira contemporânea: Flávio Izhaki, Ivana Arruda Leite, Marcelino Freire, Socorro Acioli,...

A maior parte das vinte narrativas ocupa duas, três páginas. Coerente com a ideia de que o conteúdo supera a forma, em nenhuma delas há grandes experimentos estilísticos. Ao contrário, há uma busca constante pela linguagem coloquial, pela transmissão eficiente da mensagem. As exceções são Dama do Cabaré (Luisa Geisler) e Feitio de Oração (Rafael Gallo), que fogem (mas não muito) do estereótipo narrativo.

Noel Rosa (1910-1937)
De minha parte, sem desmerecer as outras narrativas, gostei muito dos textos escritos por Aldir Blanc, Alexandre Marques Rodrigues, Cintia Moscovich, Luiza Geisler e Sergio Leo. Em ritmo de samba-canção ou de bolero, são histórias que gravitam em torno das diversas formas de fracasso amoroso.

É com o corpo que se compreende as coisas, diz o narrador de Feitio de Oração, de Rafael Gallo. É através do corpo que a vida se manifesta em um mundo tumultuado, repleto de pressões e horrores. O corpo em decomposição está presente – de maneira surpreendente – no conto de Aldir Blanc (Feitiço da Vila). O corpo doente surge – de forma dolorosa – no conto de Alexandre Marques Rodrigues (Com que Roupa). O corpo desprezado se manifesta no conto de Cintia Moscovich (Pra que Mentir?). O corpo excitado marca ponto no conto de Luiza Geisler (Dama do Cabaré). O corpo insatisfeito – que quer ser outro – aparece no conto de Sergio Leo (Tarzan, o filho do Alfaiate). Evidentemente, o livro está repleto de atividades e sentimentos incorpóreos.

Conversas de Botequim consegue transpor a barreira entre a música e a literatura. As vinte narrativas compõem diversas variações do mesmo tema. São melodias harmônicas. E que devem ser lidas em qualquer hora, em qualquer lugar. E que, independente do momento, nos encaminham às discotecas particulares ou ao You Tube, onde a voz riscada de Noel Rosa nos surpreende contando um pouco das complicações que envolvem o existir.    

 
Henrique Rodrigues, Noel Rosa e Marcelo Moutinho

TRECHO ESCOLHIDO


Se antes Sônia nunca deu bola para cantadas de pedreiro, agora mesmo é que ignorava completamente. Inclusive ali na obra nova por onde passa todos os dias enquanto segue para o ponto. Logo que subiram as primeiras vigas, ela se demorou um pouco mais olhando a estrutura do prédio, o que deve ter chamado a atenção dos trabalhadores como um convite para os constantes e tortuosos elogios.

Apesar de passar sem pressa e manter o olhar frio o suficiente para não demonstrar nenhuma resposta aos galanteios, Sônia não consegue ignorar a movimentação dos funcionários que estão acudindo um colega:

– Sardinha, acorda, Sardinha! Alguém aí estanca o sangue!

Enquanto se aproxima, os peões abrem caminho em silêncio, cheios de respeito. Sônia sente pena de Sardinha, todo ensanguentado. Tenta se lembrar das aulas de primeiros socorros, mas antes que faça qualquer coisa, ele desperta, ainda zonzo pelo tijolo na testa. A cena a faz se lembrar novamente da Duda, e o que ela teria feito no lugar.

Antes de seguir seu caminho, sem pronunciar frase alguma, Sônia apenas estende a mão e o ajuda a se levantar. 

(trecho de Mulher Indigesta, de Henrique Rodrigues) 

2 comentários:

  1. Amigo Raul Arruda, se ainda não tenho laços contigo, tenho com os teus, creio, pois fui diretor técnico do presidente Telmo Ramos Arruda na CohabSC e meu dentista é o filho dele, Renam. Gostei imensamente de teu espaço pelo conteúdo robusto de literatura, coisa rara em nossos dias, onde o povo está ligado do fácil video ou display. Parabéns! Gosto demais de literatura, mesmo de formação exatas como engenheiro; e principalmente de poesia. Procuro há tempo o poema de teu conterrâneo "Adeodato" e o não acho na rede. Se pudesses me disponibilizar em meu blog, se acaso o tiveres, seja site ou ele mesmo, agradecer-te-ia imensamente. Mas como dizia meu pai, filho, neto e bisneto de comerciantes portugueses: "quando eu entro em uma venda pela primeira vez, não saio sem comprar uma coisinha qualquer!" E eu como versejador contumaz, quando entro em um espaço importante como este, pela primeira vez, não posso sair sem deixar uns versinhos meus! E eles vão aqui ao belíssimo espaço:

    O blogue de literatura
    De um papagaio charão,
    É uma consagração
    À Serra e a sua cultura,
    Cuja pena está à altura
    Desta nação cultural:
    A língua - de Portugal
    Aos quatro cantos do mundo
    Que o talento fecundo
    De Arruda dá o seu sinal.

    Sinal do que há na Serra,
    No Brasil, no mundo inteiro
    De mesma língua e parceiro
    Do saber que o blogue encerra
    Como que um marco na terra
    Onde há o mesmo linguajar.
    Desde Macau, o lugar
    Mais distante, no oriente
    Até ao nosso continente
    Em Lages - de Arruda, o lar.

    Grande abraço. Laerte (Silo)

    ResponderExcluir
  2. Laerte: Obrigado. Eu tenho um exemplar do poema do Márcio Camargo Costa. Vou procurar. Enviarei.

    ResponderExcluir