Alguns escritores conseguem a façanha de “extrair
leite de pedra”. Pegam um assunto qualquer, acrescentam observações pessoais,
lembram histórias paralelas, destacam elementos que pareciam estranhos à
questão, estabelecem as diferenças entre o céu e o inferno, e, por milagre ou
prestidigitação (que se não é a mesma coisa, possui efeito similar), redigem um
tratado pouco convencional sobre o tema. Definitivamente, essa qualidade
literária encontra na espanhola Rosa Montero uma expressiva representante.
Em A ridícula ideia de nunca mais te ver a proposta está bem delineada. Através de um pretexto, a morte do esposo, Rosa
Montero abre a torneira da escrita e inunda a vida de Marie Curie (nascida
Marya “Manya” Skodowska, 1867-1934). O luto, desta maneira, se manifesta na
vida do Outro. Puro exercício de alteridade. Desses em que ninguém consegue esconder a curiosidade, seja pelo inusitado, seja porque uma pergunta se sobrepõe: qual foi o elo que ligou a imaginação narrativa e o que está sendo
revelado? Não há resposta “linear” para essa questão. O que o leitor percebe é
que a dor da ausência na vida das duas mulheres permitiu a construção da ponte
literária. Uma ponte pênsil, evidentemente. Dessas que balançam a cada passo,
as madeiras e os cabos acenando para o abismo.
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Rosa Montero |
Rosa Montero raramente menciona Pablo
Lizcano, o marido morto. É visível a maneira com que o colocou em segundo
plano. A santa deste livro é Marie Curie. Sempre a achei uma mulher
fascinante, algo com que quase todo mundo concorda, aliás, porque é um
personagem incomum e romântico que parece maior do que sua própria vida. Pierre
Curie também não obtém muito destaque. No texto, o “momento de glória” do
cientista ocorre quando é atropelado por uma carruagem, o crânio esfacelado por
uma das rodas do veículo.
A ridícula ideia de nunca mais te ver foi escrito sob a égide feminista. Ao destacar – de forma incessante – as
qualidades de Madame Curie, Rosa Montero repete um mantra contemporâneo: a
história das mulheres sempre foi mal contada. Ou melhor, as conquistas femininas
sempre foram diminuídas ou usurpadas pelos homens.
É preciso levar em conta que, até o século XX, as mulheres tiveram bem poucas opções de trabalho. As operárias trabalhavam o dobro e ganhavam a metade de que seus maridos recebiam, mas as de classe média nem mesmo podiam ser empregadas, salvo em alguns poucos ofícios de perfil escorregadio: preceptora, dama de companhia... Não havia outra saída senão fazer isso ou escolher uma das três ocupações tradicionais: freira, puta ou viúva. Digamos que, ao longo dos séculos, esses três lugares foram praticamente os únicos que as mulheres puderam ocupar para reger suas vidas por si próprias e fazer uma boa carreira profissional. Abadessa no convento. Cortesã de luxo. Viúva alegre e altiva, capaz de levar adiante a empresa ou o império do esposo falecido.
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“Manya” Skodowska |
Marie Curie ganhou dois (dois!) prêmios Nobel.
Em 1903, dividiu o de Física com Pierre Curie e Antoine Henri Becquerel
(pesquisas sobre radiação). Em 1911, ganhou o de Química (descoberta dos
elementos rádio e do polônio). Também foi a primeira mulher a ser admitida como
professora na Universidade de Paris. No mundo das ciências – predominantemente
masculino – Marie Curie estava em desvantagem. Além de ser uma mulher
inteligente, também não tinha nascido na França. A união de machismo e
xenofobia costuma causar estragos irreparáveis. Não foi o caso. Marie Curie passou
por cima dos preconceitos e provou estar em patamar superior.
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Pierre e Marie Curie |
Entre pesquisas teóricas e práticas,
sempre trabalhando em condições precárias, Marie Curie ainda teve tempo para
criar duas filhas. A mais velha, Irene, casada com outro cientista, Jean
Frédéric Joliot, também ganhou o Nobel de Química, em 1935. As pesquisas do casal comprovaram a
existência do nêutron e da radioatividade artificial.
Evidentemente, brincar com fogo, digo,
com radioatividade, custa caro. E naqueles tempos de pioneirismo em uma das
áreas mais perigosas da ciência, os sistemas de segurança eram praticamente
inexistentes. Não foram mortes agradáveis ou tranquilas. Ao comentar os últimos
dias de vida de Marie Curie, Rosa Montero anota: A debilidade e a fadiga a
perseguiram durante décadas, e aos sessenta anos mais parecia uma velha de
oitenta. (...) seus últimos anos foram muito dolorosos. O rádio a deixou quase
cega, e entre 1923 e 1930 fez quatro operações de catarata. A partir de 1932,
as lesões das suas mãos pioraram. Morreu em 1934, aos 66 anos, de uma anemia
perniciosa causada sem dúvida pela radiação.
Provavelmente foi esse aspecto – a heroicidade
romântica – que despertou em Rosa Montero um sentimento difuso que inicia com a
admiração e termina com algum tipo de devoção religiosa. Pontuando diversos episódios
da história de Marie Curie, o livro se aproxima perigosamente da hagiografia.
Felizmente, a vida da biografada não permite esse desacerto. Partes do diário
que escreveu logo depois da morte de Pierre, assim como alguns episódios
pessoais, fornecem material suficiente para lhe fornecer humanidade. O grande
pecado de Marie Curie se chamou Paul Langevin. A questão básica não está em uma
viúva procurar por um novo parceiro amoroso, mas em que o escolhido fosse
casado. Para os jornais e para a comunidade científica, Marie era uma devoradora de homens que havia destruído
um casal com quatro filhos. Pobre Langevin! Foi seduzido pela “viúva negra”! O
que ninguém percebe é que Langevin era um crânio em física e matemática, mas
parece que na vida real era bastante idiota. Ou seja, um carente afetivo,
desses que ensaiam ir embora e uma semana depois estão batendo na porta, implorando
para voltar.
O desdobramento dessa complicação oscila
entre o drama e a comédia. Na primeira parte, a Real Academia Sueca (ou algum
de seus representantes) enviou um comunicado, solicitando que Marie não fosse a
Estocolmo receber o Nobel. Evidentemente que a mulher fria como um peixe (na
definição de Albert Einstein) não se deixou abater por essa tolice. Em carta aos
suecos, escreveu: (...) o premio foi concedido pela descoberta do rádio e do polônio.
Creio não haver qualquer relação entre meu trabalho cientifico e os fatos de
minha vida privada.... Na segunda parte, há inúmeras publicações nas páginas
de fofocas dos jornais e revistas, vários duelos (onde todos os contendores
escaparam sem sofrer sequer um arranhão) e uma cena patética. Vários anos
depois desses episódios, Langevin pediu que Marie Curie desse um emprego para
uma de suas filhas ilegítimas. Claro que ela atendeu a solicitação.
Por fim, há uma ironia do destino. Uma das netas
de Marie (filha de Irene) se casou com um dos netos de Langevin. Marie Curie
não viveu tempo suficiente para ver esse acontecimento, mas se assim fosse,
talvez cantarolasse uns versos de Caetano Veloso: Deus é um cara gozador /
Adora brincadeira.
A ridícula ideia de nunca mais te ver é livro misto, desses que misturam a biografia de um personagem e memorias
pessoais. A viúva Rosa Montero não se esconde atrás da terceira pessoa ao
retratar a vida da viúva Marie Curie. Ao contrário, aceita o desafio. Com um
estilo fluído, de fácil leitura, quase uma conversa entre amigos, nunca perde a
oportunidade de fazer algum comentário ou acrescentar dezenas de histórias e
indicações literárias.
Os livros de Rosa Montero nos convidam para essa festa que é o espiar pelas frestas da linguagem.
Os livros de Rosa Montero nos convidam para essa festa que é o espiar pelas frestas da linguagem.
TRECHO ESCOLHIDO
Raul, estou lendo A ridícula ideia de nunca mais te ver. Sua crítica aponta pontos essenciais da obra. DE fato, Rosa Montero coloca Marie Curie em destaque. Os comentários da autora são na verdade sua maneira de subir o pedestal. Excessos feministas às vezes não ajudam na tese. Recomendo aos leitores iniciarem com a leitura pelo diário de Marie Curie, colocado no final do livro. Dessa maneira até os comentário de R. Monteiro fazem mais sentido.
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