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terça-feira, 15 de outubro de 2019

ARTUR AZEVEDO E AS CRÔNICAS DE COSTUMES



(...) os seus contos, as suas fantasias estavam ao alcance de todas as inteligências, e eram lidos, senão com avidez, ao menos com simpatia. 
Artur Azevedo, in Poverina


O tempo não perdoa. Alguns escritores (independente da contribuição histórica ou da qualidade literária) são transformados em referências historiográficas, verbetes de enciclopédias, curiosidades literárias. Nada mais do que isso. Classificados como “menores” ou “datados”, perdem leitores, desaparecem na poeira que soterra as bibliotecas.

Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo (1855-1908) é um desses casos. Menos “famoso” do que seu irmão, Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo (1857-1913), teve importante papel no cenário cultural que abrange o II Império e o início da República. Foi, inclusive, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. Sua produção literária se concentrou na dramaturgia (dramas, comédias, adaptações), o que não o impediu de escrever crônicas, contos, crítica literária e teatral. No plano político, defendeu o abolicionismo de forma incisiva.

A prosa e as peças de teatro estão publicadas em livros que se encontram fora de catálogo. Contos, volume 21 da coleção Obras Imortais da Nossa Literatura (Editora Três, 1973), fácil de ser encontrado em sebos, pode ser a oportunidade para diminuir a distância histórica e literária. São 46 narrativas breves. O ambiente e o conflito narrativo são descritos em poucas linhas. O desfecho aparece naturalmente, sem grandes efeitos estilísticos ou lições de moral. Essa simplicidade – aparente – esconde o domínio técnico, principalmente nos diálogos.

Como conto é tudo aquilo que dizemos ser conto, Artur Azevedo foi um bom cronista. São textos exemplares. Retratos de época. Em alguns momentos mostram que a sociedade carioca e, por extensão, brasileira – na transição do século XIX para o século XX – estava alicerçada na hipocrisia. Nada diferente da situação atual. A história civilizatória sempre se mostrou incapaz de mudar certos hábitos. Viver de aparência constitui a lógica da classe média, que anseia por estar em um patamar ilusório e, muitas vezes, não mede esforços para tentar concretizar esse projeto socioeconômico. Mero autoengano.

Em outros momentos, os contos/crônicas se concentram no inferno afetivo e econômico que caracteriza as relações amorosas. Embora não esteja explicito, o autor parece acreditar que o conceito de felicidade foi inventado para fraudar as emoções, sendo que o homem é a primeira vítima desse ardil. Em contrapartida, sugere que as mulheres são bonitas, sedutoras, infiéis, vaidosas e, em alguns casos, fúteis. Para melhor caracterizar essa visão, as separa em duas categorias: ou são jovens e esperam por marido ou são casadas e infiéis.

Essa visão masculina e machista está marcada em uma série de narrativas que relatam namoros complicados, pais que se metem na vida amorosa das filhas, casamentos arranjados e o adultério. No destaque, a volúpia feminina se apresenta como tema recorrente. José, personagem de A Não-me-toques, resume a tese: Enquanto foi solteira, achava minha mulher que nenhum homem era digno de ser seu marido; depois de casada (por conveniência) achou que todos eram dignos de ser seus amantes. Em X e W aparece um fetiche singular: Xisto, homem feio e pobre, mora na frente da casa de uma viúva, 30 anos, lindíssima. Um dia ele recebe um bilhete, convidando-o para atravessar a rua. Com receio e curiosidade, vai. Nos dias seguintes nenhuma notícia da pessoa amada. O mistério desaparece quando ele encontra Wladimir, que lhe conta que a viúva era uma colecionadora! A mulher tinha como propósito ter sexo com homens cujo nome iniciasse com todas as letras do alfabeto. Depois dos dois, estava faltando somente o K e o Y.

Em Black, o autor apresenta um estudo de caso e, no seu entender, a comprovação do argumento principal, ou seja, que as mulheres não são de confiança. Leandrinho, famoso bon-vivant, costumava frequentar a casa do Martins – mas, como perceberam os vizinhos, somente quando Martins não estava em casa. O único ingrediente estranho nessa aventura amorosa se chamava Black, um bull-terrier que latia com intensidade enquanto ocorriam os encontros furtivos. Para salvar as aparências e resolver problemas com a imagem social, Candinha (a esposa e amante) resolveu apresentar um ao outro em um sarau. A amizade se consolidou em 30 segundos: pareciam amigos de infância! Logo em seguida, houve o convite para que Leandrinho fosse cear com o casal no dia do aniversário de Candinha. No dia aprazado, o rapaz se apresentou para o convescote. (...) Black veio a correr lá de dentro, e começou a fazer muitas festas ao recém-chegado, saltando-lhe às pernas, lambendo-lhe as mãos, corcoveando, arfando, sacudindo a cauda irrequieta e curva. Ciente de que o cão não costumava proceder com tamanha intimidade com estranhos, (...) d. Candinha e Leandrinho foram postos na rua a pontapés valentemente aplicados.

As filigranas que envolvem a vida social também se fazem presentes nas narrativas de Artur Azevedo. Um exemplo singular é A Polêmica. Romualdo, jornalista desempregado, resolve procurar uma fonte de renda no comércio. Por isso vai procurar por Caldas, um amigo dos tempos colegiais. Foi bem recebido, mas... em ocupação diversa. O Caldas queria publicar um artigo em jornal contra um amigo comum, o Saraiva. Como não tinha capacidade para escrever, contratou o Romualdo. A necessidade de pagar as contas se impôs e o artigo foi redigido em poucos minutos. No dia seguinte, o texto estava estampado em páginas do Jornal do Comércio. E tudo estaria nos trilhos, se... se não tivesse recebido um bilhete do Saraiva. Ele queria ver o Romualdo com urgência. Sem poder fugir do chamado, foi. Mas foi com receio de ter sido descoberto. O alívio surgiu quando tomou conhecimento que Saraiva o queria contratar para escrever uma réplica ao artigo do Caldas. Quer dizer, uma réplica ao próprio artigo! Outra vez, lembrando os credores a bater em sua porta, se rendeu ao comércio literário. No dia seguinte, foi acordado pelo Caldas, que estava irritado pela replica. Enfim, durante um mês o pêndulo se fez presente. Cada um dos contendores queria contestar os argumentos do outro e o Romualdo a se esforçar para satisfazer o ego dos sujeitos. Com algum dinheiro no bolso e quase esgotado por tantas trocas de ofensas, Romualdo (...) foi gradualmente adoçando o tom dos artigos, fazendo, por conta própria, concessões recíprocas, lembrando a velha amizade, e com tanto engenho se houve, que os dois contendores se reconciliaram, acabando amigos e arrependidos de terem dito um ao outro coisas desagradáveis em letra de forma. Por fim, acabou empregado na firma de Caldas e esqueceu o jornalismo.

Outro momento hilário se apresenta em O galã. Ao ver o olhar apaixonado que a esposa dirigia ao protagonista de um espetáculo teatral, Brites convidou o ator para jantar: Quando, às seis horas da tarde, chegou o galã, ela não quis acreditar que era ele: (...) Tinha diante de si um homem feio, marcado de bexigas, os dentes postiços, o cabelo cortado à escovinha e a cara inteiramente raspada... de véspera”. (...) “E não sabia estar à mesa: repetia todos os pratos, metia a faca na boca, palitava os dentes, limpava a testa no guardanapo, escarrava, cuspia! A cena, no melhor estilo pastelão, clímax do embate entre a ilusão e a realidade, pode ser resumida em frase ligeiramente perversa: Sinhazinha estava pasmada e o Brites radiante.

Uma situação-limite se torna visível na medida em que o universo narrativo de Artur Azevedo se torna mais nítido: a existência de mulheres fortes e homens fracos. Entre o exemplo exagerado de Dona Eulália, que, entre outros agrados, bate no marido, e o ideal romântico que move o sujeito que protagoniza  Um capricho, há uma imensidão de maridos traídos, maridos que traem, trapaceiros, covardes, além dos desprovidos de inteligência intelectual e emocional. Uma multidão de homens com defeitos de fabricação. 

A gramática e a literatura são assuntos que não poderiam deixar de ser abordados. Em O gramático, Plebiscito e no atualíssimo As asneiras do Guedes, a falta de correção no falar e escrever são apontadas como exemplos da ignorância. Em História de um soneto e em Poverina, a literatura serve de moldura para depurar as relações amorosas, estabelecendo que o real  além do espanto, também possui encanto.    

As narrativas de Artur Azevedo estão enraizadas em solo urbano. Os personagens, em sua maioria, são funcionários públicos, comerciantes e alguns nobres. Sintomaticamente, os políticos estão à margem. As exceções são De Cima Para Baixo, onde a hierarquia se mostra ativa na procura por um culpado em uma falha burocrática, e o escatológico Pobres Liberais!

Para o narrador (sempre em terceira pessoa), as intrigas domésticas tecidas diante de seus olhos atentos devem ser reveladas ao público leitor – mas em uma linguagem que transforme o trágico em comédia. De preferência, nada muito escrachado, nada muito agressivo. O suficiente para mostrar o quanto o ridículo pontua as ações humanas. O suficiente para tentar esconder que entre os seus personagens se sobressaem mulheres fortes e homens fracos.

Descontadas as abordagens moderadas de alguns temas, ignorando o pudor romântico, aceitando a leveza narrativa e o humor simplório, é possível imaginar que Artur Azevedo foi, em seu tempo, uma espécie de Nelson Rodrigues avant la lettre.

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