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quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXXXIX)

 


Ao amanhecer de hoje (6h45m), completei mais um ciclo ao redor do Sol. Ou seja, estou mais velho – provavelmente menos sensato. A mitologia que relaciona a sabedoria com a velhice engana muito. Na prática acontece o contrário e, infelizmente, os canalhas costumam ser longevos. Considerando que nunca fui exatamente flor que se cheire, nas palavras de minha avó (que Deus-Pai a tenha na sua direita, porque na esquerda só tem comunista), sei do que estou falando/escrevendo.    

Não esperava chegar até aqui. Várias vezes, ao longo do percurso, testei o anjo da guarda com ações pouco recomendáveis. Tenho uma coleção de cicatrizes (físicas, psicológicas, imaginárias) para provar que, por um desses caprichos da natureza, nasci com sorte e que consegui escapar quase inteiro de todas as encrencas.

Detesto o dia do aniversário – desde os 13 anos (quando, por assim dizer, perdi a fé na humanidade). Sinto-o com a força de um abalo sísmico, uma tragédia shakespeariana (daquelas que misturam o drama com o patético). Em tempos menos áridos, costumava viajar nessa data, de preferência para lugar distante ou de difícil acesso. Uma forma (quase) educada de tentar impedir as felicitações protocolares da família e de alguns conhecidos. Evidentemente, uma atitude inócua. Ninguém consegue fugir de si mesmo.

Como mandam as regras (r)evolucionárias, estou mais velho do que o meu pai (a barca de Caronte o levou aos 57 anos, em 1989). No entanto, não há motivos para comemorações, soltar foguete, realizar festa para metade da cidade. A “melhor idade” me deixou (ainda mais) avesso às amabilidades e à etiqueta (pequena ética) de comportamento social. Não me sinto confortável no mundo em que vivo e diariamente entro em guerra contra os egos frágeis emitindo opiniões, protestando contra as situações que não me agradam, lembrando o que fulano ou sicrano fizeram no verão passado. É uma maneira racional de afastar a tristeza, o desânimo e as alucinações. Nenhuma novidade, o pessoal da astrologia costuma dizer que os aquarianos não se abalam com as emoções humanas e que são frios e calculistas. Ou seja, não possuem coração. Rematada bobagem. No peito dos desafinados também bate um coração. Quiçá de pedra, mas ainda assim coração. 

Nesses anos todos cumpri com o básico: plantei árvore, publiquei livro e (em parceria) tive filho, viajei um pouco, acumulei experiências e histórias, aproveitei (à minha maneira) a vida. Poderia ter feito muito mais, mas a preguiça não deixou. Essa ausência de produtividade capitalista, de pouco se importar com a fuleragem que acompanha a vaidade e de ser frontalmente contra o discurso da servidão voluntária, é a parte da existência que mais me deixa contente. Gosto de pensar (pretensiosamente) que – em alguns momentos – a minha vida pode ser resumida em um terço Macunaíma, um terço Ilya Ilyich Oblomov e um terço Bartleby.       

Aos seis anos de idade, quando aprendi a ler e a escrever, descobri que as palavras são comestíveis e que sempre estarei faminto. Olho para a biblioteca, as estantes repletas, e digo para mim mesmo que preciso ter mais livros físicos, que faltam muitos textos para completar as paredes da casa de papel em que vivo. Além do conhecimento que eles dividem comigo, preciso de suas companhias, preciso me sentir abraçado pelas páginas, pelo mundo do faz de conta, pelas análises filosóficas, políticas e literárias. Foi nos livros que encontrei o meu escudo contra a barbárie, onde me escondi nos momentos de tempestade, onde me diverti e sonhei com um mundo menos opressor. Fiz das palavras (para o bem e para o mal) a garantia do meu sustento, apesar das inúmeras dificuldades que tenho para colocá-las em uma ordem que faça sentido e que (independente da energia empregada) não pareça um amontoado de bobagens. Nem sempre consigo realizar essa façanha com êxito. 

Aos 62 anos, espero impaciente pelo dia em que me aposentarei. Faltam quase dois anos. Quando isso acontecer, se acontecer, talvez me aproxime da serenidade. Talvez.


5 comentários:

  1. Ah, Raul... Faça como quiser. Siga aí vivendo ao teu jeito, mas siga e siga sempre, sem pressa de acabar. E, por favor, não pare de escrever. Vida longa e bela. Grande abraço meu amigo.

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  2. Vida longa meu irmão de coração te amo muito

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  3. Completarei 40 anos em março. Penso escrever algo, já que ando pensativo com esta fase da minha vida. Após ler teu texto, pensei abandonar a ideia, pois você escreveu muito de mim ao falar de si. Incrível esse feito na literatura. Gostaria muito de conhece-lo pessoalmente e trocar ideias a partir das obras que lemos e temos em comum, como "Macunaíma", "As palavras", e de John Steinbeck, "Ratos e homens" que suponho seja a obra que você se refere no perfil, já que foi a única que li deste autor. Gratidão por este texto.

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  4. Valdney: obrigado pela leitura. A citação do Steinbeck foi retirada de "A Leste do Éden" (algumas vezes traduzido como "Vidas Amargas").

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