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segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXXXVII)

 


Quebrei um copo. Cacos de vidro se espalharam em cima da mesa e no chão do escritório. O suco de laranja escorreu como se fosse um rio transbordando. Depois que recuperei o controle da situação, passei um pano úmido na área atingida e recolhi quase todos os pedaços do copo. Os outros estão em lugares indefinidos, amanhã ou depois os encontrarei como se nunca tivessem desaparecido de meu olhar.

O prejuízo não foi grande. Dois blocos de anotação ficaram molhados. Quando o papel secar, vou ter que transcrever algumas anotações, várias senhas e diversos números telefônicos. Agradeci aos deuses do Olimpo pelos livros, espalhados na mesa e que não foram atingidos.

Um gesto desajeitado – só tenho isso como explicação. Nunca consegui administrar com habilidade as questões relacionadas com o espaço. Ambientes que não permitem liberdade de movimentos induzem aos acidentes. Queria poder evitar esse tipo de imprevisto, mas está além do meu alcance. Felizmente ocorre poucas vezes – mas, constitui um sinal psicológico de que algo está errado. O corpo não mente.

Motivos para o inconsciente se pronunciar não faltam. Começa nas questões pessoais e avança até o descalabro político que inundou o Brasil. Falta oxigênio em todo o país. Para alguém que lê os jornais diariamente, o desânimo surge como um sentimento natural. Está cada vez mais difícil viver em um lugar que adotou a desigualdade (social, econômica, racial e de gênero) como política de Estado.

Para além da macroanálise (que envolve inúmeros fatores e centenas de variáveis), é possível citar alguns aborrecimentos particulares. Um dos mais significativos, e que não pode ser desprezado, o inferno astral (período anterior ao aniversário), costuma resultar em estragos de grandes proporções. Evidentemente, o horóscopo não é um referencial de confiança, mas, como escreveu o Mário Quintana, o seguro morreu de guarda-chuva. Considerando que esse período de complicações emocionais está próximo do fim, cabe aguardar os próximos dias com alguma esperança.

A falência financeira também está assustando urbi et orbi. Em tempos de pandemia, os boletos abarrotam a caixa de correio (física e virtual) e apresentam valores astronômicos. Está sobrando mês no fim do salário. O governo, amparado em cálculos esdrúxulos anuncia que a inflação está controlada, mas a impressão que se tem é que as pessoas responsáveis por esse índice nunca frequentaram supermercado ou compraram roupas e livros. Tudo está se tornando proibitivo para quem apresenta algum tipo de vulnerabilidade econômica.

Estamos vivendo a era dos desastres – que não são percebidos em sua extensão e dano porque assumiram a forma de fragmentos, de partes que se separam do todo e que migram para a vala comum, onde a verdade e a mentira se irmanam e são substituídas, rapidamente, por outras verdades e mentiras, numa ação de marketing inescrupulosa. O poder da reflexão lenta, que exige um tempo de maturação, desapareceu. Tudo que é sólido desmancha no ar, avisou o filósofo.

O desmatamento da Amazônia, os garimpos ilegais, o caos na saúde pública, o genocídio indígena, as milicias, o descrédito internacional, a compra de votos no parlamento, o show de horrores protagonizado por aquele que está na presidência da República – como em uma novela ruim, essas aberrações devem se estender por mais dois anos (a possibilidade de acontecer algum remake não é improvável).

No turbilhão de absurdos, quebrar um copo parece um fato sem importância. E é. Mas também pode ser uma forma de trazer para a vida comum o poder simbólico das metáforas.


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