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sexta-feira, 4 de junho de 2021

DIÁRIO DA QUARENTENA (CCI)

 


Há uma palavra em japonês que me assusta. Olho para a biblioteca e a vejo – como se fosse um aviso imaginário – escrita nas lombadas dos livros. Em uma tradução ligeira, tsundoku (積ん読) identifica o comprar livros para não lê-los. É uma variação erudita da síndrome de acumulação.

Como assim, alguém compra livros e não os lê? Essa pergunta utilitarista, proferida por quem somente percebe o imediato, costuma ocorrer com bastante frequência. Normalmente está acompanhada pelo espanto. Em um mundo onde há preferência por comprar comida, pagar o aluguel e obter algum conforto, adquirir alguns livros e não os ler pode parecer desperdício. Livros não enchem a barriga de ninguém, como costumava dizer meu pai toda vez que queria diminuir emocionalmente o seu primogênito.

Mesmo assim,... Para algumas pessoas, acumular livros se faz necessário – independente de qualquer explicação racional. Estar em contato com o objeto do prazer se torna imperativo. Não satisfazer esse desejo significa alimentar uma dor insuportável. Significa um interdito ao gozo.

Ter livros é um exercício voyeurístico. Para poder fruir da potência que está presente em centenas de páginas de papel pintadas com tinta preta (ou de outra cor), urge desfrutar da estética da capa e da encadernação, além dos inúmeros elementos paratextuais que compõem o volume (a textura do papel, o cheiro, o peso). Muitas vezes, o texto em si adquire valor secundário.

Anne Fadiman, em Ex-Libris – confissões de uma leitora comum (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002), dedicou um capítulo para contar algumas histórias monstruosas: seu pai, a fim de reduzir o peso das brochuras que lia nos aviões, rasgava os capítulos terminados e os jogava no lixo; seu marido costuma ler na sauna, sem se preocupar com as páginas fendidas pelo calor [e que] caem como pétalas numa tempestade; Thomas Jefferson retalhou uma primeira edição de 1572, em grego, das obras de Plutarco para intercalar entre as páginas uma tradução em inglês. Saber que existe pessoas que praticam esse tipo de mutilação quase me fez procurar por um psicanalista. Prefiro ver os livros intactos, mesmo quando estão intocados. Não ler os livros muitas vezes evoca um respeito que muitos leitores desconhecem.

Existem razões para não ler alguns livros. Ou partes deles. Dicionários e manuais técnicos são ferramentas de consultas. Basta tê-los por perto. Quando se faz necessário, procura-se pelo trecho específico e, depois que se obtém a informação, coloca-se o volume de volta na estante, onde ficará até o momento em que a sua ajuda for imprescindível outra vez.     

Ninguém está imune ao que há de nefasto na moda e no marketing. Engana-se quem pensa que somente os clássicos (esse território confuso) possuem lugar privilegiado na vida dos leitores. Ficção científica, tramas policiais, thrillers, pornografia, história em quadrinho (mangás), histórias com final feliz (ou, vá lá, infeliz), todos esses livros merecem alguma atenção. Não há limites para a voracidade de quem procura por algum tipo de entretenimento. Então, se não houver autocontrole, um passeio pelas livrarias (ou pelos sebos) pode resultar em compras compulsivas. E que ficarão intocadas em algum canto da estante.

Não li cerca de 40% dos livros que compõem a biblioteca. Não vou verificar se esse número é maior ou menor – não gosto de reduzir a paixão ao racionalismo da quantidade. Muitos títulos foram adquiridos em função de projetos acadêmicos que não puderam ter continuidade. Algumas ideias se tornaram inviáveis, mas isso só percebi depois de ter comprado 20 ou 30 livros sobre o tema. Em dado momento, resolvi ter um acervo de literatura brasileira – especialmente, a contemporânea. Continuo seguindo esse caminho com dedicação, embora saiba que o labirinto termina em abismo.   

Por fim, alguns livros estão presentes na biblioteca pelo capricho de tê-los. Provavelmente nunca os vou ler. Ou reler. Mas, sem eles a minha vida de leitor seria mais triste.  


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