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quarta-feira, 6 de outubro de 2021

MINHA CIDADE (versão modificada)

 

Foto do arquivo do Museu Thiago de Castro

Todas as manhãs, ao abrir as cortinas, a luz plúmbea entra pela janela com uma violência assustadora. É um pequeno esplendor silencioso, que parece conversar com o vento – essa insensatez que enche de ruídos os vazios construídos na imensidão do planalto. Ao longe, o sol fraco, quase ausente, parece estar guardando o seu calor para outro lugar.

Houve um tempo em que esta cidade lembrava fotografias em preto-e-branco, gatos dormindo na varanda, intermináveis partidas de dominó, pedaços de doce de gila brincando de espalhar sabor pela boca, vizinhos – escorados na cerca que dividia quintais – trocando um dedo de prosa. As vacas mugindo logo ali, no campinho onde a gurizada jogava futebol.

Saudades daquilo que não pode mais ser recuperado. As ruas de chão batido, a argila grudada nos pés, a chuva inesperada, os barquinhos de papel deslizando nas poças d’água. A avenida Presidente Vargas parecia conduzir até outra cidade – onde era impossível ouvir a sirene da Rádio Clube e os sinos da Catedral.

Tardes devoradas no café com mistura, junto com pão feito em casa, roscas de coalhada, queijo colonial, doce de marmelo. Ainda é possível ouvir algumas vozes (cada vez mais distantes) contando as histórias de família, aventuras envoltas em nostalgia, fornecendo a ilusão de que o passado foi melhor do que o presente – esse instante que não parece ter futuro. Quem nos contará, ao redor do fogão de lenha, causos de assombração, as lendas da serpente do Tanque e do tesouro dos jesuítas enterrado no morro do Juca Prudente? Quem se recordará, com paciência e leveza, das profecias de são João Maria e da guerra do Contestado?

Domingo era dia de ir à missa. Uma espécie de ritual civilizatório, todos estavam lá, todos aqueles que não estão mais lá. No início da tarde, matinê no Cine Tamoio ou no Marajoara, farvestão daqueles, daqueles que nunca mais foram os mesmos, mesmo agora, muitos anos depois, quando podem ser vistos na televisão a cabo, apenas para lembrar que algo se rompeu, foi embora.

Ouvir a voz dos lageanos, as sílabas espaçadas, ôôôô de ca-sa! O “l” e o “r” trocando figurinhas (borso, carçado, armoço). A construção da linguagem em sua forma mais primitiva, traços inconscientes do arcaísmo quinhentista português (quequiéra?, tresantonte, trupicou, minhazarminha-du-céu). Não há motivos para se incomodar com o atropelar da gramática, o prazer indelével de arremessar palavras ao mundo – como se fossem canções.

Houve um tempo em que esta cidade lembrava algumas maçãs ácidas. A magia ocorre quando as transformamos em geleias dulcíssimas.

A beleza devastadora de viver em um lugar que chamamos de lar.


Foto do arquivo do Museu Thiago de Castro

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