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domingo, 9 de abril de 2023

A LUZ DO FAROL

 


Declan está doente. E as três mulheres mais importantes de sua vida (avó, mãe, irmã) estão concentradas em brigar umas com as outras. Provavelmente é esse o motivo que o leva a deixar o hospital em Dublin e passar algum tempo na casa da avó, uma antiga pousada, perto do penhasco de Cush (no condado de Wexford). Mas também pode ser que ele tenha escolhido encenar uma espécie de cerimônia do adeus – momento em que as lembranças do passado (principalmente da infância) estão embaralhadas na angústia de viver um presente tempestuoso. O leitor jamais saberá qual é a versão que possui maior substância, pois os acontecimentos são narrados pelo ponto de vista de Helen, sua irmã.

Durante as noites, o farol, em Tuskar Rock (a 11 km da costa), acrescenta uma espécie de chiaroscuro nessa história em que predomina o rancor. A oscilação da luminosidade – metáfora ambiciosa e que fornece uma chave de compreensão sobre o que aconteceu em outro tempo –, não diminui o fardo, não produz alívio. No entanto, acena com a esperança de que é possível romper, em algum momento, um ciclo que se repete interminavelmente desde a morte daquele que garantia a estabilidade no eixo familiar. Helen e Declan eram crianças quando o pai (ou a figura do pai) desaparece. Essa falta (que se une com outras carências) é determinante para que os filhos se afastem do convívio familiar – e que só retornam à casa da infância para se despedir do passado.

No intervalo dos ressentimentos, Helen descreve, com minúcias, a doença que está devastando o corpo do irmão. Dores incontroláveis, diarreias, insônia, cegueira, falta de apetite. A proximidade com a morte não oferece descanso. Essa situação-limite serve de gatilho para que aflorem inúmeras questões que ficaram pendentes no meio do caminho.

Acompanhando Declan estão dois amigos: Paul e Larry. A aspereza de Paul e a alegria de Larry oferecem um pouco de leveza ao texto e (sempre que possível) algum tipo de trégua na tensão familiar. Algumas cenas que protagonizam são divertidas e contém uma espécie de wit, aquele humor perspicaz que só é percebido pelo leitor algumas páginas depois.     

A luz do farol (São Paulo: Companhia das Letras, 2004) é uma narrativa descritiva, do ponto de vista geográfico. O deslocamento dos personagens pela costa da Irlanda, passando por cidades com nomes estranhos (Arklow, Gorey, Enniscorthy), fornece indicações que provocam estranhamento. É quase um livro On the road. Mas, essa paisagem proporciona uma moldura peculiar para o romance, projetando no ir e vir a ideia de que o desaparecimento daqueles que amamos também faz parte da viagem. Se o leitor for curioso, e estiver atento ao que está sendo narrado, provavelmente consultará o Google Maps para descobrir qual é a distância que separa Dublin de Donegal.

Ao abordar temas contemporâneos (Síndrome da imunodeficiência adquirida, amizade, conflitos familiares), o romance mostra que a literatura pode fornecer um olhar detalhado para alguns dos dramas que constituem esse terreno pantanoso que chamamos de vida.         

  

TRECHO ESCOLHIDO

“Eu não estou atrapalhando”, disse Lilly.

“Bom, eu achei que estava”, replicou Paul.

“Eu sou a mãe dele!”, bramiu Lilly.

Paul deu de ombros. “Ele já é adulto, está com uma dor de cabeça horrível, precisa beber alguma coisa e eu não tenho tempo para esse tipo de histeria.”

“Quer dizer que vocês vão embora?”, indagou Lilly.

“Escute, senhora Breen”, disse Paul, “enquanto Declan estiver aqui, eu não arredo o pé desta casa, tome nota disso. Se estou aqui é porque ele me pediu para vir para cá e, quando me pediu isso, o seu filho usou palavras, expressões e frases não muito edificantes a respeito da senhora, as quais prefiro não repetir. É claro que ele se preocupa com a senhora, ama a senhora e quer ter a sua aprovação. Mas também está muito doente. Por isso, é melhor a senhora parar de sentir pena de si mesma. Enquanto o Declan estiver aqui, eu não saio e o Larry também não. Quando um de nós for embora, os outros também irão, e se não acredita em mim, pergunte ao Declan.”

“O que você quer dizer com ‘palavras não muito edificantes’?”, perguntou Lilly.

“Ele está com quase trinta anos, meu Deus, e tem medo de falar certas coisas à senhora”, disse Paul. “Bolas, não tenho tempo para isso. Larry, você não quer tentar ligar o celular? Será que dá para recarregar a bateria?”

Chorando Lilly foi se refugiar no andar de cima. Helen dirigiu-se ao quarto de Declan e sentou-se na beira da cama.

“O que aconteceu?”, indagou ele.

“A mamãe discutiu com o Paul”, respondeu Helen.

“Ela não devia ter feito isso. Ele é imbatível em discussões, sempre adivinha o que a pessoa vai dizer em seguida”. Declan tampou os olhos com as mãos e estremeceu. “A dor vem em ondas”, disse ele e levantou-se para ir novamente ao banheiro. “Estou me sentindo mal de novo”.


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