Páginas

terça-feira, 21 de novembro de 2023

DEIXAR PARA AMANHÃ O QUE NÃO QUERO FAZER HOJE

 


Na última mudança de domicílio, quatro anos atrás, encaixotei uma série de livros, cópias xerox, artigos de jornal, cartas, documentos e outras bugigangas. A ideia era, na primeira oportunidade, fazer uma faxina e jogar fora tudo o que tinha deixado de ter utilidade. O tempo escorreu pelo vão dos dedos e a promessa perdeu o sentido e a direção. Quer dizer, esqueci. Ou melhor, fingi que esqueci. Adoro postergar. E a verdade (que nunca é agradável) precisa ser dita: não nasci para ser formiga ou abelha. Gosto de viver sem as amarras funcionais. Adoro o improviso. Em outras palavras, detesto as rotinas – exceto, óbvio, aquelas que construo para meu usufruto. 

Recentemente, comprei várias pastas arquivo. A ideia é tentar organizar alguns textos que publiquei em jornais e revistas, além dos recibos dos boletos que – contra a vontade – precisei pagar. Dizem que a gente deve guardar esse tipo de documentos por, no mínimo, cinco anos. Por mais cuidadoso que for o sujeito, sempre aparece (como um passe de mágica!) alguma fatura que foi esquecida. No mês passado quase fui atropelado pelo condomínio. Consegui resolver o problema nos últimos dez minutos da prorrogação do segundo tempo. Então foi aquele corre-corre para fazer um gol salvador, digo, um pix. Se essa medida emergencial não funcionasse, talvez tivesse que tentar sobreviver à disputa de pênaltis (ou a uma multa por falta de pagamento).

Enquanto o mundo ao redor se estrutura com as coisas certas nos lugares certos, sou assombrado pelo espírito de Macunaíma. Meu mantra favorito, Ai! que preguiça!, costuma me empurrar na direção do sofá, onde posso ler um pouco, ouvir jazz, sonhar com projetos que jamais se concretizarão, dormir. Deve ser algum tipo budismo (inexistente) orientando para o sossego, para construir a serenidade no meio do vendaval.

Comecei a limpeza das caixas lentamente. Muito lentamente. Trabalho uma tarde e folgo quatro ou cinco. Não estou com pressa. Com um mínimo de boa vontade, poderia terminar antes do ano novo. Poderia. No entanto, para não atropelar os desígnios do universo, estabeleci como meta o meu aniversário (em fevereiro). Provavelmente esse prazo será estendido por mais uns dois meses (chuvas, calor, viagens, indisposição, alguma outra desculpa não catalogada e que surgirá em caso de emergência).

Tenho o cansaço antecipado do que não acharei, escreveu Álvaro de Campos, lembrando que o esforço pela produção exaustiva se opõe à simplicidade. Nesse tipo de comportamento obsessivo não existe encantamento, graça ou charme. A tranquilidade desaparece, o medo prevalece. Gosto de pensar que estou em lado oposto e que desfruto da ligação amorosa que existe entre o lazer e o prazer (essa que encontramos em uma boa refeição, cerveja gelada ou ao perceber que as nuvens formam desenhos divertidos).

Só a poesia salva. Ou ameniza o espetáculo contínuo da desumanização. A vida precisa ambicionar algo mais do que ganhar dinheiro ou se realizar profissionalmente (essa ilusão induzida pelos donos dos meios de produção). As pequenas glórias passam rapidamente – o que permanece está em outra esfera. O bom mesmo é sentar na praça – sem um pingo de culpa – e ficar vendo a banda passar.   




Nenhum comentário:

Postar um comentário