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sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

O REI DA ÁGUA

 


Em um mundo aquático, no futuro distante, as irmãs Andrea e Juana precisam decidir se aceitam receber uma indenização pela morte do pai. Como acontece em muitas relações fraternas, as duas mulheres sentem prazer ao saborear os frutos do antagonismo. Criadas separadas, com interesses (inclusive econômicos) divergentes, olham uma para a outra como se fossem estranhas. E são. Uma foi criada pelo pai (ativista político), a outra pela mãe (atriz). E não se encontram em nenhuma das páginas do texto.   

A narrativa abusa das frases poéticas, compondo um campo onírico e repleto de metáforas que levam a imaginação do leitor para lugares que parecem estar distantes da linha narrativa principal – que talvez não seja de fácil percepção porque O Rei da Água (Editora Peabiru, 2023) integra uma trilogia (Pichonas e El Ojo y la Flor, as duas partes que o circundam não foram traduzidas no Brasil). Em alguns trechos parece estar faltando (ou sobrando) alguma informação. O estranhamento se faz presente.

O mundo está se tornando desertificado, a água potável substituiu o combustível fóssil como a commodity mais importante. A cidade de Tigre (Província de Buenos Aires, Argentina), aproveitando a riqueza líquida que é o Aquífero Guarani, se transforma em uma das principais fornecedoras mundiais. E isso, independente de outras questões, significa que a política, a economia e as ações sociais são administradas pelo Estado (ou por seu representante). O controle do consumo se torna um item essencial para extrair o máximo de lucro de uma atividade que tem vida útil limitada. Água é poder – segundo Tempe, o rei da água.

Como se fosse o abrir das comportas de uma represa, o fluxo narrativo avança na descrição de personagens estranhos, pouco críveis, como Tullio (o advogado) ou Cresta (o palestrante). São objetos (abjetos) que não combinam com a decoração do cenário, que confundem o desenrolar dos acontecimentos, que destoam de Galo e de Dalezio (os companheiros de Andrea e Joana, respectivamente). Esses invasores parecem querer encontrar navios ancorados, destroços suspensos, mas são incapazes de entender a topografia subaquática, e então nada mais lhes resta senão aparecerem e desaparecerem do texto como se fossem barcos à deriva no torvelinho.

O livro apresenta algumas referências às ditaduras militares, às lutas ecológicas, ao feminismo. Mas, nada se expressa de forma explícita ou panfletária, a fabulação prevalece e a narrativa procura manter uma distância segura de todos esses temas, embora não faça omissão de cada um deles. Exceto no momento mais simbólico. Entre 1976 e 1983, muitos argentinos foram sequestrados pela polícia e o exercito. Depois de muitas sessões de torturas, foram jogados em mar aberto. Calcula-se que cerca de 4.000 pessoas foram vitimas desse método de execução. Os corpos se dissolveram na água e, portanto, nunca foram encontrados.

Juana, que trabalha com internet, navega em outro tipo de águas. No entanto, estar atrás do computador não amplia a sua imunidade aos predadores. A diferença está nos perigos e no medo que precisa contornar. A vida é uma espécie de tsunami – não há diferença se é real, imaginário ou virtual, porque a destruição é incontrolável. Nesse sentido, como afirma o pai das irmãs, Não leve a vida muito a sério; você não vai sair vivo dela.   

 

Foto: Alejandra Lopez

Claudia Aboef (Buenos Aires, Argentina, 1960), mora em Tigre, na Província de Buenos Aires, e publicou Medio Grado de la Libertad (2003), Pichonas (2014), El Rey del Agua (2016), El Ojo y la Flor (2019). Escreve artigos sobre a literatura argentina em diversas revistas. Também se interessa pela astrologia.


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