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sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

AS VIRA-LATAS

 


O título original do livro de chilena Arelis Uribe, Quiltras, foi traduzido no Brasil como As Vira-latas (Bazar do Tempo, 2024). Parece insuficiente. Falta alguma coisa. O quê? Difícil precisar, talvez seja um desses ruídos da linguagem que existem entre o português, a variante chilena do espanhol e a língua do povo Mapuche. A expressão, em Chile e Bolívia, é usada para designar animais de rua (cachorros), sem raça definida, descendentes de animais selvagens. Também é uso comum para se referir às pessoas que vivem à margem da sociedade e/ou que passam por dificuldades econômicas.  

São oito narrativas, todas em primeira pessoa, protagonizadas por mulheres (que podem ser uma só) e estão centralizadas em ambientes precários – onde predominam as famílias disfuncionais, as escolas são deficitárias, a sexualidade aparece precocemente. Mesmo assim, quase nada acontece. Quer dizer, muitas coisas acontecem. Mas, nada é épico. Relatos da vida corriqueira, a união dos fios frágeis que resultam da experiencia comum. Um espanto aqui e ali. Nada que altere o desequilíbrio do mundo ou que diminua a invisibilidade de algumas questões sociais. Mesmo assim, ou talvez por isso, a luta pela sobrevivência (da infância para a adolescência, da adolescência para a vida adulta) se mostra feroz.

Meu bairro era composto de várias fileiras de ruas longas e estreitas. Cada rua facilmente agrupava quarenta casas, que se tocavam como os dedos de uma mão fechada. Eram pequenas casas nas quais, às vezes, mais de uma família vivia. Minha casa era branca e meus pais tinham construído um segundo andar com varanda. Era uma casa que se destacava. Éramos os “milionários” da rua. Até que meu pai foi despedido do emprego. Aí começou o período de crise que toda família já viveu.

Nesse ambiente, essas personagens bissexuais (em alguns momentos), esbarrando no afeto (ou na ausência de) e no desejo (ou na ausência de) vão costurando os fragmentos, rompendo a escuridão, sobrevivendo (apesar dos obstáculos, que surgem a todo momento). Em nenhum momento negam seus posicionamentos políticos e feministas.

Um dos contos (A cantina) relata a viagem da narradora para Cholchol, um pequeno povoado próximo de Temuco. Funcionária do governo, precisa inspecionar um projeto escolar inovador. As instalações degradadas do colégio superam qualquer expectativa: Toda a escola era uma espécie de labirinto de madeira. Tinha sido expandida sem planejamento e havia salas anexadas a corredores que não levavam a lugar nenhum. Parecia uma invasão de terras e não uma escola. Havia lixo nos cantos e as janelas tinham desenho de pênis e confissões amorosas. Algumas crianças corriam entre os pavilhões de madeira, como vira-latas, selvagens e inocentes.

Essa fragilidade educacional não é exceção e se relaciona com o mundo que está muito próximo do dia a dia da narradora. Em outro conto (As vira-latas), a narradora declara: Ainda me lembro, ainda sei rezar como você, porque não rezava nem em espanhol, mas ouvindo-a eu quis aprender. Imaginei que deus talvez me ouvisse melhor em inglês, que rezar em outro idioma podia encurtar longas distancias, talvez fosse um transformador que facilitaria a maneira como eu enviaria a deus minha enorme petição de demandas e reclamações. Rezei muito, mas a ajuda nunca veio. Talvez porque o meu inglês nunca tenha sido bom.

Deus sempre está distante das classes populares. Talvez o amor dos animais seja a única possibilidade de obter algum significado para a existência. Em Bestas, ao encontrar uma cachorra de rua, a memória da narradora volta à infância: Nunca mais tive um cachorro, exceto os cães sem dono que nos seguem na rua. (...) Caminhamos. Toda sexta-feira à noite eu faço esse percurso, mas nunca tinha visto essa cadela. Gosto dela. Começo a rosnar para ela e pular de um lado para outro, como uma besta, e ela rosna de volta e pula e abana o rabo porque talvez tenha se passado muito tempo desde que alguém na rua tenha lhe feito alguma graça. Esse panorama desaparece quando surgem na rua outros cachorros e que são agressivos. Metáfora iluminada para situações diárias de quem vive nas regiões afastadas do centro das cidades ou no interior do Chile.  

Os contos que compõem As vira-latas revelam o horror que constitui a vida dos habitantes periféricos. São suas angústias, carências, desencontros e mecanismos para contornar a violência que fazem desse livro um grande acontecimento literário.   


Arelis Uribe


terça-feira, 28 de janeiro de 2025

O ANO DA SERPENTE

 


O início de cada ano é uma convenção. Cada cultura adota uma forma de celebrar a data. E isso significa que existem diversos calendários no mundo. Nenhum é melhor do que o outro. São apenas diferentes.

Entre 29 de janeiro de 2025 e 16 de fevereiro de 2026, o calendário chinês celebra o ano 4723. O seu regente é a Serpente (com características de Madeira Yin).

A principal diferença entre o calendário gregoriano, utilizado pelo Ocidente desde 1582 (365 dias, 12 meses, semanas de sete dias com 24 horas), e o chinês está na contagem lunissolar do tempo. Ou seja, o calendário chinês unifica os ciclos lunares e o solar.

A lunação é o tempo entre duas luas novas consecutivas, ou seja, 29 dias, 12 horas, 44 minutos e 2,9 segundos (29,530589 dias). Cada ano possui 12 lunações, ou seja, 354 dias. Para não perder a sincronia com o ciclo solar (365,25 dias), os chineses acrescentam um mês a cada três anos.

O calendário chinês começou a vigorar em 2637 a. C., por ordem do Imperador Huang Ti, no ano 61 de seu governo. Com variações que respeitam especificidades e as tradições locais, essa forma de contagem temporal é adotada na China, na Coreia do Sul e no Japão, além de outros países com populações (ou costumes) de origem chinesa. No Japão existem algumas diferenças. Para o Juunishi (calendário japonês) é possível combinar os ciclos lunares com a contagem de tempo gregoriana.   

Segundo uma lenda antiga, Buda convidou todos os animais existentes no mundo para uma festa de Ano Novo. Apenas doze compareceram. Cada um deles recebeu de presente um ano para que pudessem influenciar a personalidade e a energia do período. Por ordem de chegada: Rato (Camundongo), Boi (Búfalo, Vaca na Tailândia), Tigre (Pantera na Mongólia), Coelho (Lebre, Gato no Vietnam), Dragão (Crocodilo na Pérsia), Serpente (Cobra, Pequeno Dragão na Tailândia), Cavalo, Ovelha (Carneiro), Macaco, Galo (Galinha), Cão, Porco (Javali).

O Cavalo de Fogo rege o mundo a cada 60 anos.    

Uma variação dessa lenda atribui ao Imperador de Jade (divindade mitológica chinesa, senhor dos céus) a organização de uma competição entre os animais para estabelecer o tempo com relação à rotação da lua. Aos doze primeiros foi atribuído um ano.

O Ano Novo é celebrado com uma festa que pode durar até 15 dias (até a Lua Cheia seguinte). No Festival das Lanternas, as pessoas penduram lanternas nos templos ou as carregam em um desfile noturno.  Fogos de artificio, roupas e decorações de cor vermelha fazem parte do ritual popular. Visitar parentes é um costume tradicional – o que ocasiona intenso trânsito de viajantes em toda a China. Casais e idosos costumam doar, em envelopes vermelhos, algum dinheiro para jovens e crianças – valores pares, impares são reservados para funerais. Os envelopes devem ser mantidos fechados sob o travesseiro durante sete dias. Dormir sobre o envelope simboliza boa sorte e fortuna.  


Festival das Lanternas

Nas celebrações familiares, é costume comer peixe inteiro (em mandarim, a palavra yu significa peixe, mas também tem som de prosperidade ou abundância), Jiaozi (Guioza, bolinhos cozidos no vapor ou fritos com recheios diversos), Tang yuan (bolinhos de arroz gelatinoso servidos em uma sopa doce), Nian Gao (Bolo do Ano Novo, algumas vezes em forma de peixe, feito de arroz gelatinoso). Todos esses pratos simbolizam a harmonia familiar e o desejo de vida longa, saúde, sorte e prosperidade.


Tang Yuan

Os especialistas em astrologia atribuem aos nascidos no signo da Serpente uma série de características: intelectuais, perspicazes, pesquisadores, sensuais, amigáveis e pacientes. A sabedoria e o mistério permitem encontrar formas de superar as adversidades (a serpente, ao mudar a pele, acena para a evolução pessoal e espiritual).

Ninguém arrisca grandes previsões para o ano da Serpente, embora seja de conhecimento geral que estamos vivendo uma era de transformações e que a humanidade não mede esforços para tentar destruir o mundo. Mesmo aqueles que dialogam com os deuses são incapazes de estabelecer um vaticínio aceitável.


segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

O CONDOMÍNIO

 


 

Algumas narrativas se caracterizam pela surpresa. Um exemplo encontra-se no romance O Condomínio (CEPE, 2024), de Frederico Toscano. Imaginando que se trata de uma espécie de tratado sobre os incontáveis conflitos protagonizados por vizinhos, disputas pelo uso da garagem, elevadores defeituosos, reuniões de condomínio, crimes passionais, o leitor transita por um cenário bastante conhecido. Essa visão é um engano. Quer dizer, as questões básicas da vida social em um edifício estão lá, mas em dado momento, tudo se modifica. E o que parecia comum se transforma no insólito.  

A capital de Pernambuco é o cenário dessa história assustadora. O prédio, reino do antagonismo social, vai sendo tomado por forças sombrias, e que apontam para o caminho literário trilhado por escritores nordestinos como Carlos Fialho (A noite que nunca acaba, Jovens Escribas, 2016) e Christiano Aguiar (Gótico nordestino, Companhia das Letras, 2022). Essa vertente literária (que discorda violentamente do realismo, embora o utilize como alicerce) propõe, de forma radical, o resgate do horrendo e do maligno. Simultaneamente, propõe a experiencia sensorial do perigo e do desequilíbrio narrativo. Para que isso aconteça, o texto não economiza em reavivar assombrações, monstros vingativos, lugares mal-assombrados e a reinterpretações de lendas urbanas e rurais.

Em O Condomínio, o anjo vingador (sedento de sangue, mas vestido de lama, de bolor, de destruição), em sua expressão mais cristalina, se manifesta, inicialmente, através de uma imensa infiltração que vai corroendo as paredes do edifício. Sem conseguir corrigir o problema, que se avoluma a todo instante (a água barrenta contaminando tudo) o síndico (saudoso dos tempos da repressão militar), concentra as suas energias em manter o pequeno poder do cargo. Falta-lhe perspicácia para entender que o prédio se transformou em um aparato de vingança por um crime ocorrido alguns anos antes. Os mortos (duas crianças) querem vingar a selvageria que os atingiu e que, de uma forma ou de outra, envolve a todos os condôminos. 

Como compete a esse tipo de proposta artística, os moradores parecem estar imobilizados. A defesa de mesquinharias pessoais impede a elaboração de uma análise racional sobre o perigo que estão correndo. Enquanto isso, as paredes vão inchando, as rachaduras multiplicam as goteiras, o sistema de fornecimento de água para os apartamentos colapsa. Mesmo aqueles que percebem que alguma coisa está fora de controle, nada ou quase nada fazem para impedir o inevitável desfecho.      

A partir da metade da narrativa, depois que o cenário está fixado e o papel de cada um dos personagens fica estabelecido, a insanidade se intensifica. Não há mais espaço para o normal ou para o estatuto da legalidade. Os moradores e um dos porteiros vão sendo destruídos de forma horrenda. No momento em que o prédio desaba, apenas um morador e dois dos porteiros se salvam. O primeiro, porque está hospitalizado; os dois funcionários, porque não estavam no local naquele momento.

Nessa história devastadora, Hellcife renasce dos escombros e dos corpos soterrados. Uma construtora, negando os acontecimentos que resultaram na catástrofe, planeja erguer um arranha-céu naquele lugar. Os parágrafos finais (repetindo um lugar comum) sinalizam para uma nova tragédia.   

 

 

Frederico Toscano

P.S: É quase imperceptível um pequeno deslize editorial. As páginas mencionadas no índice não correspondem às páginas da narrativa.


domingo, 26 de janeiro de 2025

QUATRO POEMAS SOBRE A VELHICE

 

 

Jorge Luis Borges (1899-1986)

ELOGIO DA SOMBRA

(Jorge Luis Borges)

A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão)
pode ser o tempo de nossa felicidade.
O animal morreu ou quase morreu.
Restam o homem e sua alma.
Vivo entre formas luminosas e vagas
que não são ainda a escuridão.
Buenos Aires,
que antes se espalhava em subúrbios
em direção à planície incessante,
voltou a ser La Recoleta, o Retiro,
as imprecisas ruas do Once
e as precárias casas velhas
que ainda chamamos o Sul.
Sempre em minha vida foram demasiadas as coisas;
Demócrito de Abdera arrancou os próprios olhos para pensar;
o tempo foi meu Demócrito.
Esta penumbra é lenta e não dói;
flui por um manso declive
e se parece à eternidade.
Meus amigos não têm rosto,
as mulheres são aquilo que foram há tantos anos,
as esquinas podem ser outras,
não há letras nas páginas dos livros.
Tudo isso deveria atemorizar-me,
mas é um deleite, um retorno.
Das gerações dos textos que há na terra
só terei lido uns poucos,
os que continuo lendo na memória,
lendo e transformando.
Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte
convergem os caminhos que me trouxeram
a meu secreto centro.
Esses caminhos foram ecos e passos,
mulheres, homens, agonias, ressurreições,
dias e noites,
entressonhos e sonhos,
cada ínfimo instante do ontem
e dos ontens do mundo,
a firme espada do dinamarquês e a lua do persa,
os atos dos mortos,
o compartilhado amor, as palavras,
Emerson e a neve e tantas coisas.
Agora posso esquecê-las. Chego a meu centro,
a minha álgebra e minha chave,
a meu espelho.
Breve saberei quem sou.

 


Cecília Benevides de Carvalho Meireles (1901-1964)

RETRATO

(Cecília Meireles)

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?

 


Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO

(Carlos Drummond de Andrade)

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

 


Konstantínos Photiades Kaváfis (1863-1933)

UM VELHO

(Konstantinos Kaváfis)

 

No interior do café ruidoso,

inclinado sobre a mesa, está sentado um velho;

com um jornal à sua frente, sem companhia.

 

E no desprezo da velhice miserável

pensa quão pouco fruiu dos anos

em que tinha força, o verbo e a beleza.

 

Sabe que envelheceu muito; sente-o, observa-o.

E entretanto o tempo em que era jovem se lhe afigura

como ontem. Que breve espaço, que breve espaço!

 

E medita como a Prudência o enganava;

e como sempre confiava nela – que loucura! –

a mentirosa que dizia: “Amanhã. Tens muito tempo.”

 

Lembra-se dos ímpetos que reprimia; e quanta

alegria sacrificava. Cada oportunidade perdida

zomba agora de sua prudência insensata.

 

... Mas por muito pensar e recordar,

o velho atordoou-se. E adormece,

apoiado na mesa do café.  


domingo, 19 de janeiro de 2025

STAY TRUE

 


Eu tinha 20 anos. Não consentirei que ninguém diga que é a idade mais bela da vida. As duas frases de Paul Nizan (1905-1940) não fazem parte de Stay True (WMF Martins Fontes, 2024), o livro de memórias de Hua Hsu. Mesmo assim, elas estão lá, em cada página do livro, quase como se fossem um outdoor em neon.

Stay True é um relato sobre a amizade e a brevidade da vida. É sobre o mundo universitário em Berkeley (Califórnia), nos anos 90 do século XX. É sobre aquele instante em que a juventude imagina que a graduação será suficiente para abrir todas as portas do futuro. É sobre a época das descobertas: sexo, álcool, tabaco, maconha, filosofia, conversas no meio da madrugada, leituras e viagens. É sobre o momento em que ninguém imagina o perigo.  



Nessa visão do paraíso, nem tudo se mostra idílico. O campus universitário está repleto de muros. Para separar os brancos dos outros (asiáticos, hispânicos, indianos), os membros das fraternidades dos independentes, os pobres dos ricos, os que nasceram no sul daqueles que nasceram no norte da Califórnia (99 por cento das pessoas em Berkeley pareciam vir de um desses dois lugares), os que estão destinados ao sucesso daqueles que estão a passeio. Alguns conseguiram romper essas barreiras. Nem todos. Poucos.      

Kenneth (Ken) Ishida e Hua Hsu não combinavam. O descendente de japoneses e o descendente de taiwaneses possuíam gostos, propostas de vida e formação intelectual diferentes. Algo como água e azeite. Ken: expansivo, carismático, alegre. Hua: introspectivo, preocupado em produzir fanzines sobre música. O acaso os uniu. Ou melhor, nas palavras de Hua: Há muitas moedas de troca para a amizade. Ao ver as roupas que Hua usava (compradas em um brechó), Ken pediu ajuda para encontrar algo similar. Ele iria participar de uma festa temática dos anos 70 e queria se destacar com uma aparência espetacularmente chamativa.

Depois disso, a amizade evoluiu. Os grupos que gravitavam em torno dos dois homens se aproximam e tudo parecia estar destinado à construção daquelas histórias que são relembradas, anos depois, em barbecues ou em encontros casuais. Não foi assim. Ao sair de uma festa, Ken foi morto em um assalto.

Duas horas depois, continuávamos sentados nos degraus da entrada, quando um carro de polícia trouxe Sammi e Derrick. Ela estava pálida. Derrick se remexia atrás dela, os olhos fixos no chão. Sammi nos contou que Ken estava morto. Derrick colocou o braço sobre meus ombros. Eu podia senti-lo, tenso e rígido, tentando parecer forte, e enterrei o rosto em seu peito, soluçando. “Ele se foi, Hua”, murmurou.

Incapaz de compreender a perda, e por um motivo banal, Hua somente foi capaz de descrever o episódio muitos anos depois. Foi preciso estar distante. Foi preciso seguir a vida, terminar os estudos – e lembrar do amigo como se ainda estivesse presente, como se ainda fosse alguém com quem dividia cigarros ou o acompanhava até uma loja distante para comprar donuts.     

Stay true (permaneça verdadeiro) era uma forma de cumprimento informal, uma espécie de “cuide-se”, que os dois rapazes diziam um para o outro quando se despediam.            



sábado, 11 de janeiro de 2025

A PACIÊNCIA TEM LIMITES; A BURRICE, NÃO

 

Galilée devant le Saint-Office au Vatican. 
Joseph-Nicolas Robert-Fleury (1797-1890).
Óleo sobre tela,1847. Museu do Louvre.


Qualquer pessoa com um mínimo de sensatez está com dificuldade para entender algumas coisas. No espetáculo diário (exposto em vídeos, jornais, televisões e internet), o desfile de bobagens parece não ter fim.

Por exemplo, aqueles que se caracterizam por babar na gravata, como diria Nelson Rodrigues, fazem questão de passar vergonha em público sempre que possível. Seguem, bovinamente, pastando a ignorância como se fosse o elixir da vida eterna. Gostam de ostentar a falta de conhecimento como se fosse uma medalha de guerra. São contra a ciência (principalmente nas questões relacionadas com a crise climática); contra os avanços sociais, econômicos e políticos; contra qualquer tipo de expressão artística que rompa com os cânones do bom-mocismo; contra a diversidade (racial, sexual); contra a mínima alteração na relação dominadores/dominados.

Enfim, a intolerância está ressuscitando a Idade Média. Aqui e agora. Basta olhar para os tribunais virtuais da Inquisição – que seguem produzindo notícias falsas e massacrando todos aqueles que divergem. Na outra ponta da narrativa, alguns setores pouco criativos estão praticando o saudosismo. Imaginam que o passado era melhor. Não percebem que o processo de seleção efetuado pela memória elimina as partes ruins e celebra apenas o que lhe interessa. Esse tipo de pensamento (falsa consciência) produz um mundo artificial, sem qualquer conexão com a realidade.    

Diante de tanta bufonaria, há quem recomende, como salvo conduto, praticar uma espécie de zen-budismo particular. Uma medida profilática contra a loucura. Mas, antes de adotar a posição de lótus, indeciso entre o incenso de canela e o de sálvia, deve-se acender os dois. Trata-se de um procedimento básico para afastar as energias negativas. Abrir as janelas para abraçar as forças da natureza constitui um procedimento básico para evitar a intoxicação pulmonar. Em seguida, como recomendam os melhores manuais de meditação, deve-se adotar o silêncio e procurar pelo satori. Infelizmente, a iluminação divina adora brincar de esconde-esconde. Difícil alcançá-la. Talvez porque o Nirvana e o Tibete estão longe, muito longe. Na modernidade, está cada vez mais difícil alinhar os chakras.

Mesmo assim, uma voz interna (Grilo Falante?Tinker Bell?) sussurra no ouvido: Calma, cara-pálida, ser gauche na vida não te dá o direito de se insurgir contra os néscios. Deve-se concordar, discordando (inclusive da linguagem: quem é que usa as palavras insurgir e néscio nos dias de hoje?). De qualquer forma, para que não surjam dúvidas, cabe lembrar que a paciência tem limite; a burrice, não. Ser imbecil é mais fácil, diria Sergio Porto (vulgo Stanislaw Ponte Preta).

O uso diário (e em determinas circunstancias) de um conjunto de palavras amáveis com certos interlocutores se faz necessário. Pela falta de educação burguesa (ou seja, hipócrita), cabe pedir desculpas antecipadamente. No entanto, o importante é manter o foco. Então, quando se remete a boiada ensandecida para aquele lugar (de onde não deveriam ter saído), a vida atinge um estado de satisfação inigualável. Isso não tem preço.  

Se os reacionários não querem brincar de namastê, tudo bem, a lição é simples: não há espaço para tréguas nesse combate.


quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

JOHN HOUSTON TRADUZIU JAMES JOYCE

 



Em alguns momentos a literatura e o cinema se encontram e produzem maravilhas que deixam o leitor/espectador pensando que o encantamento é uma das formas de dar sentido à vida.

Habitualmente a literatura serve de inspiração para o cinema. Raramente acontece o contrário.

Uma adaptação do conto Os Mortos, de James Joyce (1882-1941) serviu de base para o último filme dirigido por John Marcellus Huston (1906-1987).

Os Vivos e os Mortos (título no Brasil) foi exibido de maneira póstuma no Festival de Veneza, uma semana depois da morte do diretor.  

Publicado em 1914, na coletânea Dublinenses, o conto se concentra em dois episódios distintos. A moldura principal está na festa oferecida pelas “três Graças”: Júlia, Kate e Mary Jane.  Reunindo parentes, amigos e alunos, o evento (que acontece em Dublin, no dia 06 de janeiro de 1904, Dia de Reis) se divide em diversas atrações: concerto artístico, baile e ceia. No intervalo entre as atividades, os convidados conversam, bebem ponche ou uísque, namoram, brigam.

Como compete às narrativas de época, o enredo aborda algumas questões pontuais: o nacionalismo, a decadência da vida cultural e as idiossincrasias do círculo de amizades.     

Durante a ceia, Gabriel Conroy faz um pequeno discurso de agradecimento para as anfitriãs. Em tom nostálgico, em certo momento, afirma (...) sempre há, em reuniões como esta, pensamentos mais tristes que recorrem em nossas mentes: imagens do passado, da juventude, das mudanças, dos rostos ausentes de que sentimos falta aqui esta noite. Nosso caminho pela vida é repleto de muitas memórias ruins: e se nós nos remoermos demais nessas memórias, jamais encontraremos forças para seguir bravamente com nosso trabalho entre os vivos.




Nas entrelinhas, as palavras de Gabriel anunciam a finitude da vida, as perdas, as lágrimas que precisarão ser contidas, o inexorável. E como não há como prever quem não estará presente no próximo ano, o que ele mais teme é que a tradição deixe de existir – e que  isso resulte na ausência da alegria e do afeto entre os amigos.

Ao final da festa, Gabriel encontra a esposa na escada, ouvindo o canto de um dos convidados, Bartell D’Arcy.

A música determina o ponto divisório da narrativa. A alegria festiva desaparece. Gabriel, que estava empolgado, pensando que poderia desfrutar de um pouco mais de prazer junto com a esposa, descobre que algo de difícil compreensão tomou conta do ambiente.   

No hotel, algum tempo depois, Gretta esclarece o motivo da tristeza. A música a fez lembrar um amor da adolescência, quando morava em Galway. Enciumado, Gabriel quer detalhes, quer saber se ela ainda ama o rapaz. A esposa esclarece que não há motivos para preocupação: Michael Funey morreu de pneumonia aos 17 anos de idade.

Pouco importam as explicações, o desassossego se estabelece. Não há como retornar ao que era antes. A sombra do rapaz acompanhará o resto da vida conjugal.    

Alguns pontos de luz no vidro fizeram-no virar para a janela. Havia começado a nevar novamente. Ele assistiu, sonolentamente, aos flocos, prateados e escuros, caindo obliquamente contra os lampiões. (...) A neve caía, também, sobre todas as partes do cemitério solitário na montanha onde Michael Furey estava enterrado. Ela espalhava-se densamente sobre as cruzes tortas e os túmulos, as pontas do pequeno portão, os espinhos estéreis. A alma de Gabriel desmaiou devagar enquanto ele ouvia a neve caindo levemente sobre todo o universo e levemente caindo, como a descida ao seu fim derradeiro, sobre todos os vivos e os mortos.



A versão filmada por John Huston (roteiro de Walter Anthony [Tony] Huston) segue o enredo literário na quase totalidade. Alguns elementos foram suprimidos ou manejados para que aparecessem em outra cena. Nada que modifique a ideia geral. Mesmo assim,...

Mesmo assim, o filme consegue transmitir o sentimento de melancolia e de perda que envolve a trama. Parte desse sucesso se deve à parceria entre Donal McCann (1943-1999), que interpreta Gabriel, e Anjelica Huston, que dá vida à Gretta.




John Marcellus Huston (1906-1987)