O título original do livro de chilena Arelis Uribe, Quiltras, foi traduzido no Brasil como As Vira-latas (Bazar do Tempo, 2024). Parece insuficiente. Falta alguma coisa. O quê? Difícil precisar, talvez seja um desses ruídos da linguagem que existem entre o português, a variante chilena do espanhol e a língua do povo Mapuche. A expressão, em Chile e Bolívia, é usada para designar animais de rua (cachorros), sem raça definida, descendentes de animais selvagens. Também é uso comum para se referir às pessoas que vivem à margem da sociedade e/ou que passam por dificuldades econômicas.
São oito narrativas, todas em primeira pessoa, protagonizadas por mulheres (que podem ser uma só) e estão centralizadas em ambientes precários – onde predominam as famílias disfuncionais, as escolas são deficitárias, a sexualidade aparece precocemente. Mesmo assim, quase nada acontece. Quer dizer, muitas coisas acontecem. Mas, nada é épico. Relatos da vida corriqueira, a união dos fios frágeis que resultam da experiencia comum. Um espanto aqui e ali. Nada que altere o desequilíbrio do mundo ou que diminua a invisibilidade de algumas questões sociais. Mesmo assim, ou talvez por isso, a luta pela sobrevivência (da infância para a adolescência, da adolescência para a vida adulta) se mostra feroz.
Meu bairro era composto de várias fileiras de ruas longas e estreitas. Cada rua facilmente agrupava quarenta casas, que se tocavam como os dedos de uma mão fechada. Eram pequenas casas nas quais, às vezes, mais de uma família vivia. Minha casa era branca e meus pais tinham construído um segundo andar com varanda. Era uma casa que se destacava. Éramos os “milionários” da rua. Até que meu pai foi despedido do emprego. Aí começou o período de crise que toda família já viveu.
Nesse ambiente, essas personagens bissexuais (em alguns momentos), esbarrando no afeto (ou na ausência de) e no desejo (ou na ausência de) vão costurando os fragmentos, rompendo a escuridão, sobrevivendo (apesar dos obstáculos, que surgem a todo momento). Em nenhum momento negam seus posicionamentos políticos e feministas.
Um dos contos (A cantina) relata a viagem da narradora para Cholchol, um pequeno povoado próximo de Temuco. Funcionária do governo, precisa inspecionar um projeto escolar inovador. As instalações degradadas do colégio superam qualquer expectativa: Toda a escola era uma espécie de labirinto de madeira. Tinha sido expandida sem planejamento e havia salas anexadas a corredores que não levavam a lugar nenhum. Parecia uma invasão de terras e não uma escola. Havia lixo nos cantos e as janelas tinham desenho de pênis e confissões amorosas. Algumas crianças corriam entre os pavilhões de madeira, como vira-latas, selvagens e inocentes.
Essa fragilidade educacional não é exceção e se relaciona com o mundo que está muito próximo do dia a dia da narradora. Em outro conto (As vira-latas), a narradora declara: Ainda me lembro, ainda sei rezar como você, porque não rezava nem em espanhol, mas ouvindo-a eu quis aprender. Imaginei que deus talvez me ouvisse melhor em inglês, que rezar em outro idioma podia encurtar longas distancias, talvez fosse um transformador que facilitaria a maneira como eu enviaria a deus minha enorme petição de demandas e reclamações. Rezei muito, mas a ajuda nunca veio. Talvez porque o meu inglês nunca tenha sido bom.
Deus sempre está distante das classes populares. Talvez o amor dos animais seja a única possibilidade de obter algum significado para a existência. Em Bestas, ao encontrar uma cachorra de rua, a memória da narradora volta à infância: Nunca mais tive um cachorro, exceto os cães sem dono que nos seguem na rua. (...) Caminhamos. Toda sexta-feira à noite eu faço esse percurso, mas nunca tinha visto essa cadela. Gosto dela. Começo a rosnar para ela e pular de um lado para outro, como uma besta, e ela rosna de volta e pula e abana o rabo porque talvez tenha se passado muito tempo desde que alguém na rua tenha lhe feito alguma graça. Esse panorama desaparece quando surgem na rua outros cachorros e que são violentos. Metáfora iluminada para situações diárias de quem vive nas regiões afastadas do centro das cidades ou no interior do Chile.
Os
contos que compõem As vira-latas revelam algumas histórias dos
habitantes periféricos no Chile. São suas angústias, carências, desencontros e
mecanismos para contornar a violência que fazem desse livro um grande
acontecimento literário.
Arelis Uribe |
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