Algumas narrativas se caracterizam pela surpresa. Um exemplo encontra-se no romance O Condomínio (CEPE, 2024), de Frederico Toscano. Imaginando que se trata de uma espécie de tratado sobre os incontáveis conflitos protagonizados por vizinhos, disputas pelo uso da garagem, elevadores defeituosos, reuniões de condomínio, crimes passionais, o leitor transita por um cenário bastante conhecido. Essa visão é um engano. Quer dizer, as questões básicas da vida social em um edifício estão lá, mas em dado momento, tudo se modifica. E o que parecia comum se transforma no insólito.
A capital de Pernambuco é o cenário dessa história assustadora. O prédio, reino do antagonismo social, vai sendo tomado por forças sombrias, e que apontam para o caminho literário trilhado por escritores nordestinos como Carlos Fialho (A noite que nunca acaba, Jovens Escribas, 2016) e Christiano Aguiar (Gótico nordestino, Companhia das Letras, 2022). Essa vertente literária (que discorda violentamente do realismo, embora o utilize como alicerce) propõe, de forma radical, o resgate do horrendo e do maligno. Simultaneamente, propõe a experiencia sensorial do perigo e do desequilíbrio narrativo. Para que isso aconteça, o texto não economiza em reavivar assombrações, monstros vingativos, lugares mal-assombrados e a reinterpretações de lendas urbanas e rurais.
Em O Condomínio, o anjo vingador (sedento de sangue, mas vestido de lama, de bolor, de destruição), em sua expressão mais cristalina, se manifesta, inicialmente, através de uma imensa infiltração que vai corroendo as paredes do edifício. Sem conseguir corrigir o problema, que se avoluma a todo instante (a água barrenta contaminando tudo) o síndico (saudoso dos tempos da repressão militar), concentra as suas energias em manter o pequeno poder do cargo. Falta-lhe perspicácia para entender que o prédio se transformou em um aparato de vingança por um crime ocorrido alguns anos antes. Os mortos (duas crianças) querem vingar a selvageria que os atingiu e que, de uma forma ou de outra, envolve a todos os condôminos.
Como compete a esse tipo de proposta artística, os moradores parecem estar imobilizados. A defesa de mesquinharias pessoais impede a elaboração de uma análise racional sobre o perigo que estão correndo. Enquanto isso, as paredes vão inchando, as rachaduras multiplicam as goteiras, o sistema de fornecimento de água para os apartamentos colapsa. Mesmo aqueles que percebem que alguma coisa está fora de controle, nada ou quase nada fazem para impedir o inevitável desfecho.
A partir da metade da narrativa, depois que o cenário está fixado e o papel de cada um dos personagens fica estabelecido, a insanidade se intensifica. Não há mais espaço para o normal ou para o estatuto da legalidade. Os moradores e um dos porteiros vão sendo destruídos de forma horrenda. No momento em que o prédio desaba, apenas um morador e dois dos porteiros se salvam. O primeiro, porque está hospitalizado; os dois funcionários, porque não estavam no local naquele momento.
Nessa
história devastadora, Hellcife renasce dos escombros e dos corpos soterrados.
Uma construtora, negando os acontecimentos que resultaram na catástrofe,
planeja erguer um arranha-céu naquele lugar. Os parágrafos finais (repetindo um
lugar comum) sinalizam para uma nova tragédia.
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Frederico Toscano |
P.S:
É quase imperceptível um pequeno deslize editorial. As páginas mencionadas no
índice não correspondem às páginas da narrativa.
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