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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

O CRIME DO BOM NAZISTA

 


Falta, no Brasil, bons livros de entretenimento. José Paulo Paes (1926-1998) fazia essa observação no século passado. O tempo não eliminou a carência. Salvo engano, aconteceu o contrário. A literatura brasileira mergulhou nos dramas familiares, nas neuroses múltiplas, nas questões raciais, nas discussões sobre sexualidade – questões importantíssimas e necessárias, mas... muito sérias, pouco divertidas. E a literatura não precisa ser tão circunspecta. Um pouco de entretenimento não faz mal a ninguém.    

Raros são os escritores que ousam brincar com as potencialidades do texto, sem se deixar levar pelas discussões emocionais e ideológicas. Samir Machado de Machado é uma dessas exceções.

O crime do bom nazista (Todavia, 2023) une política e polícia, preconceitos variados e eugenia. Como pano de fundo as viagens transoceânicas do Luftschiffbau Graf Zeppelin (LZ 127), uma das grandes invenções de transporte de passageiros da época. A aviação comercial ainda estava no início e não tinha autonomia para as grandes viagens. Outro elemento histórico: o nazismo tinha conquistado o poder na Alemanha a pouco tempo – mas já contava, inclusive no Brasil, com muitos adeptos.  

  


Enquanto o dirigível se desloca do Recife para o Rio de Janeiro, o fotografo Otto Klein, aliás Jonas Shmuel Kurtzberg, é encontrado morto no banheiro masculino. Cianureto. Bruno Brückner, detetive da polícia alemã, estava a bordo e foi convocado para ajudar a desvendar o crime.  

Se em alguns momentos o enredo do romance se parece com um daqueles enigmas propostos por Agatha Christie (1890-1976), Brückner está muito distante de ser uma espécie de Hercules Poirot. Depois de interrogar alguns prováveis suspeitos, o policial conclui (para decepção de vários personagens) que Otto Klein se suicidou. Para não ter que fornecer explicações à polícia brasileira, jogam o corpo em alto-mar.

Questão resolvida? Obviamente que não. Há um plot twist no capítulo 10. Esse trecho do livro, por ser discursivo, está fora do tom ágil que caracteriza as páginas anteriores. Samir Machado de Machado não perde a oportunidade de defender a homossexualidade e faz um relato da violência estatal durante o nazismo. Boates e bares são destruídos, revistas são fechadas, algumas pessoas são presas em campos de concentração e, logo depois, mortas. Enfim, o inferno em vida.

No desfecho da história, o verdadeiro Jonas Shmuel Kurtzberg (que até então se apresentava como Bruno Brückner) desfruta da liberdade nas ruas do Rio de Janeiro. Mas isso só se torne possível através de um jogo de espelhos rocambolesco – onde cada elemento fornece uma imagem enganadora (talvez encantadora). Ou seja, tudo muda nas últimas páginas, fornecendo uma visão oposta ao que o enredo sugeria incialmente e conclui de forma básica: Pois se havia algo de que até o fim de seus dias ele nunca sentiria culpa foi ter feito com que Otto Klein se tornasse, enfim, um bom nazista, do único modo concebível que um nazista possa ser bom: estando morto.

PS) Em O crime do bom nazista (Prêmio Jabuti 2024 para romance de entretenimento), alguns trechos do romance fazem algumas observações que podem ser lidas como metáforas da situação brasileira recente. Principalmente nas situações em que o autoritarismo se faz presente, seja no cerceamento das liberdades individuais, seja na imposição moral dos comportamentos.

 

Samir Machado de Machado


Samir Machado de Machado (Porto Alegre, 1981) é o autor de Quatro soldados (Não Editora, 2013), Homens elegantes (Rocco, 2016) e Tupinilândia (Todavia, 2018). Coautor, junto com Luisa Geisler, Marcelo Ferroni e Natalia Borges Polesso, do romance Corpos Secos (Alfaguara, 2020).


sábado, 22 de fevereiro de 2025

PATTI SMITH ENCONTRA ALLEN GINSBERG

 

Patti Smith e Allen Ginsberg


Craig Brown, em Um por um – 101 encontros extraordinários (Editora Três Estrelas, 2014), conta que Patti Smith (Patricia Lee Smith, 1946), que morava com Robert Mapplethorpe (1946-1989) no segundo andar do Chelsea Hotel (222 West 23rd Street, Manhattan, New York), estava em grave situação financeira: eles viviam da confecção de colares artesanais ou produziam happenings (performance artística que combina teatro e artes visuais). Essas duas atividades não eram rentáveis.

 

Patti Smith e Robert Mapplethorpe

Numa tarde chuvosa, Patti foi até uma lanchonete próxima. Queria comer um sanduiche de queijo e alface. Depositou as poucas moedas que tinha (equivalentes a 55 centavos de dólar) na máquina e esperou pela comida. Que não veio. Em algum momento percebeu que o alimento tinha sido reajustado em mais 10 centavos – e ela não tinha esse dinheiro. Tentou reaver as moedas, mas a máquina não devolveu.

Nesse momento, um homem corpulento, de barba escura e crespa, se aproximou e perguntou se poderia ajudar. Era o poeta beat Allen Ginsberg (1926-1997), que estava voltando do enterro de Jack Kerouac (Jean-Louis Lebris de Kerouac, 1922-1969). Ele depositou os 10 centavos que faltavam e, além disso, pagou uma xícara de café.

Em uma mesa próxima, os dois começaram uma conversa sobre poesia. Que é interrompida quando Allen percebeu a ironia da situação: muitas vezes as aparências enganam. Quando ele se prontificou a ajudar, impactado pelo visual andrógino de Patti, imaginou que...  


“Você é menina?”, ele pergunta.

“Sou. Algum problema?”

Ginsberg dá risada.

“Desculpe. Achei que você fosse um menino bonito”

Patti percebe o mal-entendido.

“Bem, isso quer dizer que devo devolver o sanduíche?”

“Não, aproveite. O engano foi meu.”

 

De qualquer forma, depois que o equívoco foi esclarecido, Patti e Allen se tornaram grandes amigos. Inclusive, algum tempo mais tarde, talvez anos, eles tentaram compor juntos algumas canções (que não resultaram em sucesso, porque Ginsberg era muito verborrágico).

 

Allen Ginsberg, Patti Smith e William Burroughs

Certa vez, Ginsberg perguntou a Patti: “Como você descreveria a ocasião em que nos conhecemos”?

“Eu diria que você me deu de comer quando eu estava com fome”, ela respondeu. 

 

Arthur Rimbaud

Quando Ginsberg morreu, em 1997, Patti compareceu à cerimônia fúnebre, na St. Mark’s Church in-the-Bowery (131 E 10th Street, East Village, New York), usando uma camiseta branca. Na estampa frontal, o rosto de Jean-Nicolas Arthur Rimbaud (1854-1891), o santo protetor dos poetas desajustados. Como homenagem e manifestação pela perda, ela cantou uma das músicas de Hank Willians (1923-1953), onde se destacam os versos: The silence of a falling star / Lights up a purple sky / And as I wonder where you are / I’m so lonesome I could cry (O silêncio de uma estrela cadente / ilumina um céu púrpura / E conforme eu imagino onde você está / Estou tão só que poderia chorar). [tradução livre].





quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

O PEÃO

 


Raramente a literatura relata as boas notícias (e isso é uma excelente notícia). No ano de 1962 alguns acontecimentos se destacaram (na opinião do jornalista espanhol Paco Cerdà). São esses fatos que compõem O peão (Editora Mundaréu, 2025). 

Tendo como base a partida de xadrez entre Robert James Fischer (1943-2008) e Arturo Pomar Salamanca (1931-2016), no Interzonal de Stockholm, em 1962, e que terminou em empate após 77 lances, o livro traça um painel de época. Nesse ano devastador aconteceram muitas coisas terríveis.


Pomar x Fischer. Stockholm, 1962

O peão, peça menos valiosa no jogo de xadrez, algumas vezes é sacrificado para que algum plano complicado se desenvolva. É com essa metáfora pouco usual que Cerdà dirige os holofotes para os personagens menores, aqueles que, por diversos motivos, são usados e descartados no cenário histórico. São homens e mulheres que lutaram por melhores condições de vida, que combateram o autoritarismo, que desapareceram nas prisões (vítimas da repressão policial, violações domiciliares, perseguições, torturas, assassinatos).

No lado oposto estão os políticos que utilizam a máquina do Estado para oprimir o povo (e que simbolizam as peças maiores). É um cenário angustiante, repleto de violência e mortes.

Na medida em que a partida entre Fischer e Pomar se desenvolve, Cerdà, em capítulos curtos, vai fazendo uma série de ligações com o mundo exterior. Descreve as greves dos mineiros espanhóis, a luta antirracista estadunidense, o conflito do Vietnam, a Guerra Fria, a crise dos misseis em Cuba, Marilyn Monroe (Norma Jeane Mortenson, 1926-1962) cantando no aniversário de John Fitzgerald Kennedy (1917-1963), as organizações espanholas no exílio, as ações do Euskadi Ta Askatasuna (ETA – Pátria Basca e Liberdade).   

Do ponto de vista enxadrístico, o Interzonal de Stockholm (que foi vencido por Fischer) é a antessala do Campeonato Mundial, que aconteceu em Rejkjavik, Islândia, em 1972. Mas que para que isso aconteça, os peões precisam se mover pelo tabuleiro, ganhando espaço, sendo manipulados: Henry Alfred Kissinger (nascido Heinz Alfred Kissinger, 1923-2023), um defensor intransigente da Realpolitik (situação diplomática que adota as considerações práticas em detrimento da ideologia), telefonou, no mínimo duas vezes, para Fischer incitando-o a contribuir na luta geopolítica da Guerra Fria. Movido pelo nacionalismo, Bobby decide jogar contra Boris Vasilievich Spassky (n. 1937) e, por via transversa, combater a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Ou seja, existia uma outra partida sendo jogada no tabuleiro do poder – onde Fischer, Spassky e Pomar eram apenas peões, peças insignificantes e que poderiam ser sacrificadas no momento em que isso fosse conveniente.


Spassky x Fischer. Rejkjavik, 1972

Pomar, depois de ser aclamado como menino prodígio do xadrez espanhol, foi ignorado pelo governo fascista de Francisco [Paulino Hermenegildo Teódulo] Franco [Bahamonde Salgado-Araujo y Prado de Lama] (1892-1975) e acabou seus dias como funcionário público (Correios de Espanha). Resignação é uma de suas palavras favoritas.  

Fischer, depois de ser aclamado como menino prodígio do xadrez estadunidense e de se tornar campeão do mundo, terminou os seus dias como um pária, após ter reeditado o match contra Boris Spassky em 1992  (parte em Sveti Stefan, proximo de Budva, Montenegro, e parte em Belgrado, Sérvia). Naquela época os países que foram desmembrados da antiga Iugoslávia eram proibidos para os cidadãos estadunidenses. Se somam nessa posição complicada várias declarações de Bobby contra a política de Estados Unidos. Um pedido de prisão é emitido. O passado do ex-campeão mundial de xadrez é ignorado. Fischer precisa se exilar na Islândia para poder ter um pouco de paz.

Spassky, que foi um dos meninos prodígios da Rússia, depois que foi derrotado por Fischer, caiu em desgraça e perdeu as vantagens que tinha na URSS. Em 1978, obteve cidadania francesa. Desde então mora no exílio. 

Segundo um ditado italiano, quando il gioco è finito, il re e il pedone vanno nella stessa scatola (no fim do jogo, rei e peão voltam para a mesma caixa). É verdade, mas como disse outro enxadrista: antes do final, Deus fez o meio de jogo. Na confusão em que a grande maioria das peças ainda estão sobre o tabuleiro, muitas coisas acontecem, muitos peões são sacrificados – sem remorso, sem piedade.  

O livro de Paco Cerdà revisita os principais acontecimentos de 1962. Com a lente historiográfica, o jornalista mostra os desdobramentos (seja retroativos, sejam antecipatórios) e as consequências desses fatos. São histórias brutais sobre a opressão e o horror político.    


Paco Cerdà


terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

A PORCA, A ARRUELA E O PARAFUSO

 


Mudaram o ponto do ônibus. Está uns 60 metros mais longe. Difícil entender. Isso não impede que se possa imaginar um possível motivo. No ritmo "prendam os suspeitos de sempre", a concessionária de carros de luxo, próxima do antigo ponto, é a principal suspeita. Ferrari, Porsche e BMW nunca combinaram com os problemas econômicos da população. Alguém deve ter pensado que facilitar o fluxo do dinheiro compensa deslocar os usuários do transporte público. Mas também existe uma demolição em frente ao lugar onde estava o ponto do ônibus. Estranha coincidência. A situação é nebulosa. Mas ninguém vai (ou quer)  esclarecer o caso. O horror é constante. Quem se importa se aqueles que possuem dificuldade para caminhar vão precisar se adaptar à nova situação? Sair de casa cinco minutos mais cedo. Atravessar a primeira faixa da avenida e a ponte. Esperar o semáforo fechar. Olhar para os dois lados antes de atravessar a outra faixa da avenida. Todo cuidado é pouco. O perigo está sempre na espreita. Enfrentar a calçada esburacada. Olhar por onde pisa. Desviar das poças d’água que estão no meio do caminho. Evitar chegar ao ponto do ônibus e ver o ônibus ir embora sem você. Evitar ter que correr os últimos metros. Evitar ficar sem fôlego. Limpar o suor do rosto. Esperar que o ônibus não esteja atrasado. Esperar que o ônibus não esteja cheio. Sonhar em viajar sentado até o Centro da cidade. Nem sempre isso é possível. Raramente é. Embarcar no primeiro ônibus que passar. Superar a barreira que chamam de catraca. Olhar para os outros passageiros e não ver. Procurar por algum lugar desocupado. Alguém está falando alto no celular. Relata alguma desgraça familiar. E não se importa em compartilhar a história com os outros passageiros. As complicações de estar dentro do ônibus, separado do que existe lá fora. A vida (ávida) escorre pelas janelas do ônibus. Fotogramas desfocados, descartáveis. Imagens que se desfazem a todo instante. Lições da transitoriedade. Um desses solavancos que assustam quando o ônibus precisa frear para não se chocar com outro veículo. Sempre existe o risco de acontecer algum tipo de confusão. Em algum momento o trânsito deixa de se movimentar. O mundo em suspensão. Pode ser por apenas alguns segundos. Depois, a aceleração. O mundo em movimento. O terminal de ônibus se aproxima. Faltam apenas duas quadras. O distante e o perto se confundem. O motorista do ônibus não tem dificuldades em seguir a rota pré-estabelecida. Basta virar à esquerda e seguir em frente. Vários passageiros se levantam dos assentos. Um sentimento irracional parece mover todos na direção da saída. Querem deixar o ônibus o mais rápido possível. O que parecia segurança se transforma em agonia. Muitos se desesperam com o tempo que o ônibus leva para estacionar. Sentem que tudo demora uma eternidade. Muitos ficam aliviados quando pisam em terra firme. Encontram a fórmula mágica que permite dissolver o estresse. E que permite que o ar circule livremente pelos pulmões. Em sentido oposto, na calçada do terminal, algumas pessoas querem entrar no ônibus instantaneamente. Querem garantir um lugar para sentar. Querem ter certeza de que vão poder ir para casa ou para o trabalho. O ciclo recomeça. A porca, a arruela e o parafuso apertam um pouco mais o existir.               


sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

SOBRE ESTAR VIVO

 


Dizem que os aquarianos não possuem coração. Bobagem. No peito dos desafinados também bate um coração. De pedra. Preciosa. Precisa. De difícil extração. Em mina escura. Tarefa somente possível aos poucos. Aos eleitos. Aqueles que entendem que a raposa sabe muitas coisas, mas que o ouriço sabe o que é mais importante.

Na Route 66, novas histórias estão esperando. Sem concessão às emoções mundanas. Sem se preocupar com as linhas retas. Enquanto todo mundo espera a cura do mal / e a loucura finge que isso tudo é normal, / é preciso ter paciência. Difícil encenar essa versão particular do triplo twist carpado reverso. As pernas tortas e essa falta de jeito para suportar o inverno da nossa desesperança confirmam a expectativa.

No tempo em que festejavam o dia de meus anos / Eu era feliz e ninguém estava morto, recitava Álvaro de Campos. As palavras nunca traduzem, de forma integral, o que se quer dizer, escrever, expressar. Na colheita interminável das dúvidas, uma pequena chama no meio da escuridão. É melhor saber algumas perguntas do que ter todas as respostas.

O mundo não vai terminar com uma explosão, mas com um gemido. Os deuses, com o olhar fixo no futuro, adoram adotar o exercício pedagógico. É preciso estar atento ao aviso. A contagem do tempo como termômetro da crueldade. A espera pelos bárbaros. Se eles virão ou não, o estrago será igual.  O fim, enfim.