Raramente a literatura relata as boas notícias (e isso é uma excelente notícia). No ano de 1962 alguns acontecimentos se destacaram (na opinião do jornalista espanhol Paco Cerdà). São esses fatos que compõem O peão (Editora Mundaréu, 2025).
Tendo como base a partida de xadrez entre Robert James Fischer (1943-2008) e Arturo Pomar Salamanca (1931-2016), no Interzonal de Stockholm, em 1962, e que terminou em empate após 77 lances, o livro traça um painel de época. Nesse ano devastador aconteceram muitas coisas terríveis.
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Pomar x Fischer. Stockholm, 1962 |
O peão, peça menos valiosa no jogo de xadrez, algumas vezes é sacrificado para que algum plano complicado se desenvolva. É com essa metáfora pouco usual que Cerdà dirige os holofotes para os personagens menores, aqueles que, por diversos motivos, são usados e descartados no cenário histórico. São homens e mulheres que lutaram por melhores condições de vida, que combateram o autoritarismo, que desapareceram nas prisões (vítimas da repressão policial, violações domiciliares, perseguições, torturas, assassinatos).
No lado oposto estão os políticos que utilizam a máquina do Estado para oprimir o povo (e que simbolizam as peças maiores). É um cenário angustiante, repleto de violência e mortes.
Na medida em que a partida entre Fischer e Pomar se desenvolve, Cerdà, em capítulos curtos, vai fazendo uma série de ligações com o mundo exterior. Descreve as greves dos mineiros espanhóis, a luta antirracista estadunidense, o conflito do Vietnam, a Guerra Fria, a crise dos misseis em Cuba, Marilyn Monroe (Norma Jeane Mortenson, 1926-1962) cantando no aniversário de John Fitzgerald Kennedy (1917-1963), as organizações espanholas no exílio, as ações do Euskadi Ta Askatasuna (ETA – Pátria Basca e Liberdade).
Do ponto de vista enxadrístico, o Interzonal de Stockholm (que foi vencido por Fischer) é a antessala do Campeonato Mundial, que aconteceu em Rejkjavik, Islândia, em 1972. Mas que para que isso aconteça, os peões precisam se mover pelo tabuleiro, ganhando espaço, sendo manipulados: Henry Alfred Kissinger (nascido Heinz Alfred Kissinger, 1923-2023), um defensor intransigente da Realpolitik (situação diplomática que adota as considerações práticas em detrimento da ideologia), telefonou, no mínimo duas vezes, para Fischer incitando-o a contribuir na luta geopolítica da Guerra Fria. Movido pelo nacionalismo, Bobby decide jogar contra Boris Vasilievich Spassky (n. 1937) e, por via transversa, combater a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Ou seja, existia uma outra partida sendo jogada no tabuleiro do poder – onde Fischer, Spassky e Pomar eram apenas peões, peças insignificantes e que poderiam ser sacrificadas no momento em que isso fosse conveniente.
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Spassky x Fischer. Rejkjavik, 1972 |
Pomar, depois de ser aclamado como menino prodígio do xadrez espanhol, foi ignorado pelo governo fascista de Francisco Paulino Hermenegildo Teódulo Franco Bahamonde Salgado-Araujo y Prado de Lama (1892-1975) e acabou seus dias como funcionário público (Correios de Espanha). Resignação é uma de suas palavras favoritas.
Fischer, depois de ser aclamado como menino prodígio do xadrez estadunidense e de se tornar campeão do mundo, terminou os seus dias como um pária, após ter reeditado o match contra Boris Spassky. Se somam nessa posição complicada várias declarações de Bobby contra a política de Estados Unidos. Um pedido de prisão é emitido. O passado do ex-campeão mundial de xadrez é ignorado. Fischer precisa se exilar na Islândia para poder ter um pouco de paz.
Spassky, que foi um dos meninos prodígios da Rússia, depois que foi derrotado por Fischer, caiu em desgraça e perdeu as vantagens que tinha na URSS. Em 1978, obteve cidadania francesa. Desde então mora no exílio.
Segundo um ditado italiano, quando il gioco è finito, il re e il pedone vanno nella stessa scatola (no fim do jogo, rei e peão voltam para a mesma caixa). É verdade, mas como disse outro enxadrista: antes do final, Deus fez o meio de jogo. Na confusão em que a grande maioria das peças ainda estão sobre o tabuleiro, muitas coisas acontecem, muitos peões são sacrificados – sem remorso, sem piedade.
O
livro de Paco Cerdà revisita os principais acontecimentos de 1962. Com a lente historiográfica, o jornalista mostra os desdobramentos (seja retroativos, sejam
antecipatórios) e as consequências desses fatos. São histórias brutais sobre a opressão e o horror político.
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Paco Cerdà |
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