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sexta-feira, 30 de maio de 2025

TRISTE CUÍCA

 


Aos poucos estão sendo publicadas uma série de textos produzidos durante ou depois da pandemia de Covid-19 – principalmente contos e depoimentos pessoais. São narrativas que procuram relatar o horror do confinamento, o trabalho remoto, as perdas familiares, o absurdo derivado de um suposto fim do mundo.

Pergunto a alguns amigos se escrevem ou já escreveram diários. Essa questão, proposta por Julia Wähmann, em Triste Cuíca (Editora Mapa Lab, 2024), comprovou que as respostas se dividem em dois grupos. As mulheres, sim, na adolescência ou mesmo na fase adulta. Raros são os homens que se preocupam em relatar o dia a dia. Parecem não se importar com esses eventos. Mas as urgências propostas pelos acontecimentos de 2020 (seja por pânico, seja por não ter encontrado melhor atividade na ocasião) fizeram que todos se dedicassem a relatar as banalidades que os acompanharam durante a quarentena. Ou seja, os diários se multiplicaram nesse período – com a devida correção de substituir os cadernos manuscritos pelas telas dos computadores.

Julia editou as anotações que fez durante a quarentena, mantendo o caráter coloquial da escrita que procura atender as próprias demandas ao mesmo tempo em que quer expressar questões coletivas. Infelizmente, vários trechos do livro fazem menção a algumas situações que somente possuem sentido para os envolvidos, o leitor fica a ver navios, sem saber quem é quem e ao que se referem. Mas, no geral, o livro cumpre com o seu propósito de descrever um momento crítico da vida brasileira.

Como se fosse um abraço metafórico, Julia trava interessante diálogo intertextual com Albert Camus, Fábian Casas, Maurice Blanchot, Virgínia Woolf, José Saramago, Maria Julieta e Carlos Drummond de Andrade, Annie Ernaux, Joan Didion, David Perlov, Lygia Fagundes Telles, Ana Martins Marques, Jeremy Rifkin, Noel Rosa, Wilson Batista, Rebecca Solnit, Svetlana Aleksiévitch, Rubem Braga.

Se o mundo lá fora está em ruínas, dentro do apartamento o calor humano, o afeto e a esperança são sinais de resistência – e isso se torna efetivo através das leituras, nas alusões intelectuais, nas conversas com os amigos (por e-mail, por telefone, por vídeo chamada): Bruna, Thiago, Bel, Mariana, Nonato, Guilherme, Paloma, Greg. Isolamento não significa evitar o contato com aqueles que fazem parte de nossas vidas.  

Daqui a vinte ou trinta anos, ao reler meus escritos de agora, vou saber separar os fatos da ficção? Essa proposição serve de referência para as lembranças deixadas pelo avô que Julia não conheceu. As muitas cartas e os depoimentos, inclusive quando serviu na Força Expedicionária Brasileira, contrastam os dois períodos históricos. É nesses relatos que Julia descobre que A história que me venderam quando criança era diferente. Envolvia condecorações, heróis, o País em maiúsculas. Submetidos às péssimas condições do inverno europeu, os soldados brasileiros precisaram enfrentar um inimigo melhor preparado em diversos quesitos. Aos poucos as palavras amargura e precariedade tornam-se constantes no seu relato. É na leitura desses documentos que Julia tem um insight: Nunca pensei que algumas passagens de um Diário de Campanha estariam tão próximas destes dias de quadros inesquecíveis de dor e agonia. Essa é uma das virtudes dos relatos históricos, eles servem de refletores para outras tragédias.

A pandemia passou (?!?!) e já é possível andar pelas ruas pra ver os ipês em flor. Mas, o mundo não ficou melhor, ficou diferente. Talvez seja isso que fornece substância aos versos de um samba de Noel Rosa: Parecia um boi mugindo / aquela triste cuíca / tocada pelo Laurindo. Em outro contexto, Laurindo era o apelido pejorativo do Batalhão em que o avô de Julia serviu na campanha italiana, e que se refere a outro verso de outro samba: Laurindo desceu o morro para dizer que a Praça Onze tinha acabado. Nem a Praça acabou, nem os desastres deixaram de acontecer no front da guerra (em 1945 e em 2020). Ao seu tempo, coube aos herdeiros dos sobreviventes fazer releituras e interpretações de outra operação complicada e atabalhoada (...) em que foi preciso descer o morro dos Apeninos de forma não muito correta. A maneira com que as autoridades brasileiras trataram a pandemia também foi complicada e atabalhoada – muitas mortes poderiam ter sido evitadas se as ações governamentais fossem mais eficientes, menos relapsas.   

A parte boa da escrita de diários é que ela quase sempre é inconclusiva, não precisa de uma cortina que se feche depois de um grande final. Ela apenas se esvai, sem histórias inventadas ou traumas, e sem respostas definitivas às perguntas que a despertam e a movem. Estou ótima, Greg, mas não quero escrever mais nada. Ou não quero mais escrever esta história. Só quero que ela acabe.            


Julia Wähmann também escreveu Cravos (Editora Record, 2016) e
Manual de Demissão (Editora Record, 2018), entre outros textos


quarta-feira, 21 de maio de 2025

AS HERDEIRAS

 


Lis e Erica são irmãs. Olivia e Nora são irmãs. Depois do suicídio de Carmen, a avó, as quatro mulheres recebem como herança uma casa enorme na periferia de um vilarejo em Castilla. As primas possuem afinidades – as irmãs, não.

Com esse conjunto complexo de elementos, Aixa de La Cruz construiu um romance que se concentra em algumas das sutilezas que compõem o relacionamento entre pessoas diferentes. São esses detalhes da trama que se destacam em uma narrativa que mistura narrador onisciente e monólogos interiores. Dividido em sete partes, cada uma com quatro capítulos curtos, em alguns momentos o leitor confunde as vozes narrativas – há uma certa complexidade que se soma aos poucos diálogos. Uma vez vencido esse obstáculo, a leitura se torna fluída.

Inicialmente, o texto parece propor descobrir o motivo do suicídio da avó. Poucas páginas depois, o leitor percebe que esse é um detalhe menor, uma desculpa para analisar a tensão que existe no ambiente familiar – as mulheres foram beneficiadas (ou amaldiçoadas) por algo mais do que um pedaço da casa (organismo vivo, místico, encantatório).

No tempo em que as quatro mulheres dividem o mesmo espaço físico ocorrem muitas coisas. Elas se transformam, se aproximam umas das outras, adquirem forças para enfrentar o mundo hostil (o marido tóxico, o traficante, o possível estuprador, as inúmeras contradições da convivência humana). Sem que percebam ou concordem, segredos são revelados, as crises aparecem/desaparecem, encontram acolhimento. Nessa sororidade (muitas vezes agressiva), (...) os pontos soltos se juntam sozinhos. Finalmente [se] entende onde estão, quem são e o que vai acontecer dali em diante. Não é o [desejado], mas é a única coisa que faz sentido.

No espaço externo, entre a horta e as outras casas da vila (inclusive as que estão abandonadas), o contato com a natureza prevalece. É possível que a avó ausente (embora sua presença possa ser sentida a todo instante em cada objeto, em cada peça da casa, em alguns sonhos), um pouco antes do seu encontro com a morte, como compete às pessoas que possuem o dom xamânico de entender a linguagem das plantas medicinais e/ou alucinógenas, tenha traçado (ou imaginado) o destino das quatro mulheres. Tanto mistério de um lado e tanta realidade irredutível de outro sem que os planos se comuniquem, sem que alguém possua uma chave de interpretação.

A energia que emerge a todo instante, modificando atitudes, induzindo ações, promovendo o aprendizado, de certa forma, se aproxima do sobrenatural. Aprender é recordar. E recordar é entender agora o que ignorava um instante atrás. São essas estruturas (físicas, mentais, religiosas ou imaginárias) que produzem pouco a pouco (...) [alguns] truques de sobrevivência.

Quando Olivia percebe que está triste, mas que a tristeza é uma emoção calma, conclui que prefere a tristeza à raiva. E sabe que, ontem mesmo, teria lidado com essa descoberta com raiva. Nessa mudança de postura, o ontem não existe mais porque, assim como a raiva (sentimento agressivo, próprio daqueles que preferem brigar), não se enquadra na serenidade proposta pela casa onde as quatro mulheres descobrem a importância de estar juntas e em paz. Provavelmente, Carmem aprovaria esse entendimento.

As Herdeiras (Editora DBA. Tradução de Marina Waquil) é leitura para quem tem espírito de aventura.  


Aixa de La Cruz

sexta-feira, 16 de maio de 2025

OS MENINOS ADORMECIDOS

 


A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida – SIDA/AIDS (junto com a peste bubônica e a pandemia do covid-19) estabeleceu um dos momentos em que a vida humana foi colocada em risco. Foi durante as décadas de 1980/90 que um grupo de pesquisadores (imunologistas, infectologistas, virologistas) franceses e estadunidenses iniciaram a procura de algum método para determinar as causas da doença e de que maneira a doença poderia ser controlada – em outras palavras, diminuir o número de mortes.

Foi um período doloroso da história da ciência. Milhares de pessoas foram infectadas em todo o mundo. Em um primeiro instante, predominou o estigma social (o rótulo “câncer gay” teve bastante impacto). Demorou algum tempo para que percebessem que a doença não era uma exclusividade da comunidade homossexual. Quando descobriram que o sangue era um dos vetores de transmissão, além das relações sexuais, surgiu uma mudança de entendimento – a vida de doentes que precisam de transfusão de sangue, hemofílicos e usuários de drogas (principalmente aqueles que compartilham seringas) estava em perigo.    

Em Os Meninos Adormecidos (Editora Fósforo, 2024. Tradução de Camila Boldrini), Anthony Passeron, ao relatar a história de um de seus tios, aproveita a oportunidade para traçar um histórico dessa pesquisa. Désiré, viciado em heroína, morreu aos 23 anos. Representante da jeunesse dorée francesa que foi devorada pelos acontecimentos depois de maio de 1968, cresceu sem muitas perspectivas de lutar por alguma mudança na vida pacata de quem residia em uma aldeia perdida no meio do nada. Mesmo sendo o primeiro filho de uma família de açougueiros que conseguiu um diploma universitário, em dado momento, querendo se afastar do tédio, abandonou o emprego em um cartório e foi passar algum tempo em Amsterdam (Nederland), paraíso das liberdades sexuais e alucinógenas.

Voltou infectado – e dependente químico. Trouxe junto Brigitte, a namorada (que, logo depois, ficou grávida de Émilie). O resto da história não possui mistério: pequenos roubos para poder financiar o vício, sintomas iniciais da doença, internações hospitalares em Nice, a destruição do corpo. Simultaneamente, a família também ficou enferma: a negação da mãe de Désiré sobre o caminho de autodestruição escolhido pelo filho, o julgamento moralista da comunidade, as mortes de Désiré e Brigitte – sem que ninguém pudesse fazer alguma coisa.

O ápice da tragédia acontece com a morte de Émilie, aos dez anos. Sobre o enterro da prima, Anthony Passebon escreve: Não me lembro de quase nada. Adoraria ter esquecido o pouco de que me lembro. (...) Lembro-me apenas disto, do frio seco de uma tarde de novembro e de uma massa silenciosa que desvia o olhar ao escutar os gritos de minha avó. Nós a carregamos na frente do cortejo, como um soldado ferido que trazem de volta do front. Um dia de derrota.

O trabalho insano de pesquisa científica sobre a doença, feito de avanços e recuos, nem sempre aconteceu de forma pacífica. Em alguns momentos, a equipe estadunidense não contribuiu de maneira eficiente para que houvesse progresso. De qualquer forma, foi somente em 1993 que se obteve um fio de esperança para o controle da doença. Pela primeira vez, estudos robustos confirmaram que uma associação de zidovudina com outro fármaco retarda as complicações ligadas à infecção e prolonga sensivelmente a expectativa de vida dos pacientes. Em 1995, Jacques Leibowitch inicia um estudo com cerca de vinte pacientes. A experiência, denominada “Stalingrado”, consistia em misturar AZT, ddC e ritonavir (inibidor de protease). (...) os dados das primeiras avaliações são categóricos: apesar da dureza do tratamento, observa-se na totalidade dos pacientes uma queda espetacular da carga viral. Finalmente.   

Em 2008, Françoise Barré-Sinoussi e Luc Montagnier receberam o Nobel de Medicina pela descoberta do vírus da SIDA/AIDS, pesquisa realizada no Instituto Pasteur, em Paris. Como acontece em certos momentos da história, a injustiça se fez presente: Muitas vozes se levantaram (...) por não entenderem a decisão de restringirem o prêmio a duas pessoas. Por que não houve uma atribuição mais ampla? Estavam pensando em Willy Rozenbaum, Jacques Leibowitch e Françoise Brun-Vézinet, que fizeram soar o alarme quando a doença se manifestou e que recorreram ao Instituto Pasteur; em Jean-Claude Chermann, que dirigia o laboratório no qual Françoise Barré-Sinoussi trabalhava; em David Klatzmann, que foi o primeiro a observar a ação do vírus nos linfócitos T4. Como se fosse possível diminuir o estrago, os dois laureados, na cerimônia em Estocolmo, insistiram em declarar a dimensão coletiva da descoberta.    


Anthony Passeron

   
           

quarta-feira, 14 de maio de 2025

A CABEÇA BOA

 


Alguns livros são estranhos. Um exemplo é A Cabeça Boa, de Lilian Sais (Editora DBA, 2025). Parte de uma série de textos sobre a perda – principalmente o luto familiar –, a estrutura fragmentária (em alguns momentos, apenas uma frase) vai construindo um discurso que se aproxima das narrativas fantásticas – e que se afastam do entendimento linear dos acontecimentos narrados.

Em outro livro da autora, O Funeral da Baleia (Editora Patuá, 2021), o experimento é menos radical, mas confirma a adoção de um estilo literário que se manifesta através do uso da linguagem inventiva. Os estertores da baleia encalhada na praia são tão abruptos quanto a morte da mãe e a perda da racionalidade do pai.   

A Cabeça Boa avança nessa trilha, mas não fornece atalhos. Ao contrário. Com a morte do pai, a narrativa recorta o pensamento em dezenas de pequenas peças literárias (sobrepostas como se fossem tijolos na construção de um muro) que mostram o quão impotente é aquele que não consegue deter o curso desse rio caudaloso que chamam de vida. Resta apenas a oportunidade de relatar os fatos, mas de uma maneira tal que fica definida que viver é morar na “fronteira”, no décimo terceiro andar do Edifício Baroneza, naquele prédio, situado na linha de frente de algo que não se pronuncia.

Ao leitor cabe interpretar as metáforas, somar as indefinições, imaginar o que está escondido nesse labirinto. Se isso for possível (e talvez não seja), faltam peças no quebra-cabeças, o desenho não se completa, o absurdo e o estranhamento predominam. Mesmo assim, o leitor, ao ser confrontado com situações inesperadas, onde a curiosidade predomina, isso motiva para que a leitura tenha sequência. Parte desse mecanismo encontra explicação na mistura de realidade, ficção e elementos do sobrenatural – características do realismo mágico.

São poucas as lembranças do passado, um fio condutor tênue, elemento de ligação entre a falta e a celebração da história que se esgotou na lenta passagem dos dias. Em alguns momentos, a dramaturgia que acompanha o luto se mostra presente: É tão difícil se lembrar das coisas. Há coisas que você lembra bem, claro. Mas em geral estão distantes. O pai não vai mais levar a menina para a escola, não vai mais lhe ensinar a somar ou diminuir os números das coisas ao seu redor. Esse exercício matemático está destinado ao esquecimento. Em algum momento, Lilian (a narradora) erra as somas. Então conta os próprios passos na rua. Tenta calcular quantos passos faltam para você chegar ao Baroneza. Quando chega, adormece e sonha com o pai. Esse mergulho no mundo onírico, destroços da memória, celebra a perda, reaviva o luto, e aproxima os vivos dos mortos.      

Os poucos personagens da narrativa não possuem densidade. São sombras (sobras) que vão sendo diluídas na medida em que a narrativa evolui e a promessa de esclarecimento da razão existencial do texto desaparece. Em alguns trechos parecem fantasmas – figuras destinas a vagar no tempo e no espaço porque não há um lugar onde possam descansar, onde possam obter um pouco de paz.

O nódulo no pescoço de Lilian sinaliza que a sua vida também está próxima do fim. Talvez seja por isso que recebe a visita do homem desconhecido (que pode ser uma projeção de seu pai); talvez esteja na hora de atravessar a linha férrea e ver o que existe do lado de lá. Isso, meu bem, é um show de humor.   


Lilian Sais

segunda-feira, 5 de maio de 2025

A CULPA É DO LOU REED

 


Um elogio duplo à cidade de São Paulo e ao jornalismo cultural – apesar de se concentrar no centro da cidade e na crítica musical. Menos é mais. Muitas vezes, demais. Não importa. Certas coisas estão isentas de juízos de valor. Por isso, o ideal é aumentar o som da playlist e se deixar embalar pelas aventuras de Copland (Cop, Copi, Coppie, Cooperfield), protagonista de A Culpa é do Lou Reed, romance de Jotabê Medeiros (João Batista Medeiros de Araújo) publicado em 2024 pela Editora Reformatório.

A geografia da parte central da metrópole está em primeiro plano. Entre o Edifício Copan e o Parque Antarctica, entre o Hotel Hilton, o Largo do Arouche, a Boca do Lixo, a Estação São Bento e a Galeria do Rock, parte da história da música vai sendo contada na medida em que Copland caminha pelas ruas, praças e avenidas, feito um flaneur perdido no tempo e no espaço, no dia 12 de outubro de 1988. Ele está indo assistir ao show Human Right Now!, promovido pela Anistia Internacional para comemorar os 40 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Nessa espécie de road book (celebração do deslocamento urbano), surgem em cada página do livro algumas pessoas estranhas, cada uma concentrada na própria loucura. Os personagens icônicos (pitorescos) do centro de São Paulo, o dono do sebo, a reunião de críticos musicais em uma loja de discos, os vários jornalistas extravagantes, o maestro de música clássica, “Escadinha”, o “beijoqueiro”, Patrício Bisso, alguns artistas sendo assassinados por michês – a fauna e a flora da floresta paulista se mostram diversificadas e divertidas. Um cenário que nunca mais se repetiu. Por isso, enquanto o futuro não acontece, o narrador revisa incontáveis episódios do passado glorioso. Em contrapartida, o presente não é tão auspicioso: campanha eleitoral de Erundina, o reggae (além do break, do hip hop, do rap) criando o próprio espaço musical, a venalidade das rádios (o jabaculê ditando as regras do sucesso), as boates e os bares onde todo mundo se encontra e se detesta, o aumento dos casos de aids/sida, a procura pelos paraísos perdidos. São indícios de que o leitor está diante de um roman à clef – somente aqueles que conhecem ou viveram a história musical de São Paulo conseguem ter acesso à “chave” e apreender todo o conteúdo narrado, além de descobrir quem é quem na confusão toda. Para os outros leitores, resta tentar ler as entrelinhas e rir com algumas dos episódios relatados (principalmente aqueles que são de conhecimento geral).  

Como pano de fundo, o crítico musical vive uma paixão platônica por Simone S., uma herdeira excêntrica. Esse desencontro sempre resulta em complicações emocionais para Copland e, em algumas ocasiões, hematomas na groupie (que, ao desejar fazer sexo com astros internacionais do rock, lembra Penny Lane, personagem emblemática do filme Almost Famous, Dir. Cameron Crowe, 2000).

O final do romance é melancólico e previsível. Em um mundo repleto de predadores, os deuses não costumam perdoar aqueles que esbanjam a juventude com certas bobagens – por exemplo, garantir a sobrevivência diária.

 

TRECHO ESCOLHIDO

– O problema são esses malditos intelectuais de jornal!, bradou Chumawski, sempre habitando aquela fronteira de quase-reaça, quase-gênio. Vivem decretando a morte disso, a morte daquilo, nascimento de outra bagaça. Levam a sério um monte de farsantes. Acho que até isso é culpa do Lou Reed, foi ele quem iniciou isso quando começou a dizer que ambicionava aproximar o rock da arte, fazer rock para um público adulto, andar de mãos dadas com o Delmore Schwartz. Aquela baboseira de “E se Raymond Chandler escrevesse uma letra de rock?”. O resultado é esse, essa praga de roqueiro querendo citar Rimbaud, copiando mal os versos de Blake e Yeats, imitando simbolista francês. Só pode ter sido o Lou Reed, prosseguiu Chuma, aquele maldito ordenhador de poetas suicidas!  



Jotabê Medeiros (João Batista Medeiros de Araújo).