Aos poucos estão sendo publicadas uma série de textos produzidos durante ou depois da pandemia de Covid-19 – principalmente contos e depoimentos pessoais. São narrativas que procuram relatar o horror do confinamento, o trabalho remoto, as perdas familiares, o absurdo derivado de um suposto fim do mundo.
Pergunto a alguns amigos se escrevem ou já escreveram diários. Essa questão, proposta por Julia Wähmann, em Triste Cuíca (Editora Mapa Lab, 2024), comprovou que as respostas se dividem em dois grupos. As mulheres, sim, na adolescência ou mesmo na fase adulta. Raros são os homens que se preocupam em relatar o dia a dia. Parecem não se importar com esses eventos. Mas as urgências propostas pelos acontecimentos de 2020 (seja por pânico, seja por não ter encontrado melhor atividade na ocasião) fizeram que todos se dedicassem a relatar as banalidades que os acompanharam durante a quarentena. Ou seja, os diários se multiplicaram nesse período – com a devida correção de substituir os cadernos manuscritos pelas telas dos computadores.
Julia editou as anotações que fez durante a quarentena, mantendo o caráter coloquial da escrita que procura atender as próprias demandas ao mesmo tempo em que quer expressar questões coletivas. Infelizmente, vários trechos do livro fazem menção a algumas situações que somente possuem sentido para os envolvidos, o leitor fica a ver navios, sem saber quem é quem e ao que se referem. Mas, no geral, o livro cumpre com o seu propósito de descrever um momento crítico da vida brasileira.
Como se fosse um abraço metafórico, Julia trava interessante diálogo intertextual com Albert Camus, Fábian Casas, Maurice Blanchot, Virgínia Woolf, José Saramago, Maria Julieta e Carlos Drummond de Andrade, Annie Ernaux, Joan Didion, David Perlov, Lygia Fagundes Telles, Ana Martins Marques, Jeremy Rifkin, Noel Rosa, Wilson Batista, Rebecca Solnit, Svetlana Aleksiévitch, Rubem Braga.
Se o mundo lá fora está em ruínas, dentro do apartamento o calor humano, o afeto e a esperança são sinais de resistência – e isso se torna efetivo através das leituras, nas alusões intelectuais, nas conversas com os amigos (por e-mail, por telefone, por vídeo chamada): Bruna, Thiago, Bel, Mariana, Nonato, Guilherme, Paloma, Greg. Isolamento não significa evitar o contato com aqueles que fazem parte de nossas vidas.
Daqui a vinte ou trinta anos, ao reler meus escritos de agora, vou saber separar os fatos da ficção? Essa proposição serve de referência para as lembranças deixadas pelo avô que Julia não conheceu. As muitas cartas e os depoimentos, inclusive quando serviu na Força Expedicionária Brasileira, contrastam os dois períodos históricos. É nesses relatos que Julia descobre que A história que me venderam quando criança era diferente. Envolvia condecorações, heróis, o País em maiúsculas. Submetidos às péssimas condições do inverno europeu, os soldados brasileiros precisaram enfrentar um inimigo melhor preparado em diversos quesitos. Aos poucos as palavras amargura e precariedade tornam-se constantes no seu relato. É na leitura desses documentos que Julia tem um insight: Nunca pensei que algumas passagens de um Diário de Campanha estariam tão próximas destes dias de quadros inesquecíveis de dor e agonia. Essa é uma das virtudes dos relatos históricos, eles servem de refletores para outras tragédias.
A pandemia passou (?!?!) e já é possível andar pelas ruas pra ver os ipês em flor. Mas, o mundo não ficou melhor, ficou diferente. Talvez seja isso que fornece substância aos versos de um samba de Noel Rosa: Parecia um boi mugindo / aquela triste cuíca / tocada pelo Laurindo. Em outro contexto, Laurindo era o apelido pejorativo do Batalhão em que o avô de Julia serviu na campanha italiana, e que se refere a outro verso de outro samba: Laurindo desceu o morro para dizer que a Praça Onze tinha acabado. Nem a Praça acabou, nem os desastres deixaram de acontecer no front da guerra (em 1945 e em 2020). Ao seu tempo, coube aos herdeiros dos sobreviventes fazer releituras e interpretações de outra operação complicada e atabalhoada (...) em que foi preciso descer o morro dos Apeninos de forma não muito correta. A maneira com que as autoridades brasileiras trataram a pandemia também foi complicada e atabalhoada – muitas mortes poderiam ter sido evitadas se as ações governamentais fossem mais eficientes, menos relapsas.
A
parte boa da escrita de diários é que ela quase sempre é inconclusiva, não
precisa de uma cortina que se feche depois de um grande final. Ela apenas se esvai,
sem histórias inventadas ou traumas, e sem respostas definitivas às perguntas
que a despertam e a movem. Estou ótima, Greg, mas não quero escrever mais nada.
Ou não quero mais escrever esta história.
Só quero que ela acabe.
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Julia Wähmann também escreveu Cravos (Editora Record, 2016) e Manual de Demissão (Editora Record, 2018), entre outros textos |