Os dez contos de Papai, de Emma Cline (Editora Intrínseca, 2025. Tradução: Marcello Lino) transitam pelo mal-estar, pelo desconforto. Todos os personagens estão deslocados – como se um imenso naufrágio os atingissem, a água subindo lentamente, a falta de ar se fazendo sentir, tudo ao redor desmoronando, a aflição de não encontrar saída para situações constrangedoras ou trágicas.
Esse
estranhamento está presente em todas as narrativas – que, de certa forma,
tentam retratar a realidade familiar contemporânea: casais separados, traições
conjugais, filhos que nunca correspondem à imagem que os pais projetaram, pais
que perderam a conexão com os filhos, adultização de crianças. O inferno dentro
de casa (mesmo para aqueles que vivem em locais separados).
Embora
sejam narrativas lineares (começo, meio e fim – nessa ordem), o que se destaca
é a ação narrativa intermediária e o anticlímax nos desfechos (os conflitos
nunca são resolvidos). Como se fosse consequência natural, quase todos os
personagens se decepcionam.
As
desavenças entre as gerações se manifestam, em What can you do with a
general, como uma batalha não declarada, mas que é capaz de implodir
sentimentos e ampliar as mágoas.
Richard,
o pai ausente precisa ir até um colégio particular para conversar com o filho,
que cometeu um ato violento (não nominado). O contraste entre os dois
personagens estabelece o cerne de Northeast regional.
Uma
história banal, A babá, adquire contornos específicos na medida em que
envolve terceiros – e que, com isso, têm as suas vidas modificadas, embora não
ocorra nenhuma tragédia, apenas o desconforto ao hospedar a filha de uma amiga
(que se envolveu sexualmente com o pai da criança que cuidava).
Tudo
está envolto no incômodo. Em Arcádia, Peter vai morar na fazenda que
pertence aos irmãos Otto e Heddy (sua namorada grávida). Os acontecimentos vão
enredando-o de tal forma que só resta para Peter a resignação.
O
filho de Friedman aborda uma situação embaraçosa: George, na
companhia de um amigo, precisa assistir ao curta-metragem dirigido pelo filho
(um desses sujeitos que está longe de corresponder à imagem que o seu pai
sonhou como ideal para o filho).
A
primeira vez que Emma Cline teve algum destaque no Brasil ocorreu quando a revista
Granta em Língua Portuguesa (nº 1, Editora Tinta-da-China, maio de 2018)
publicou Los Angeles. Uma mulher, que trabalha em uma fábrica de roupa
intima feminina, vende – pela Internet – algumas peças usadas. A parafilia
aparece de diversas formas e conduz a protagonista ao abismo das ilusões
capitalistas. Um exemplo de como são complicados os caminhos do desejo.
O
melancólico A balada de Mackie Messer relata os desencontros entre três
amigos. Mas, o pano de fundo mostra que o desequilíbrio transcende a questão
econômica (que impacta todos os personagens) e se estende até os filhos e as
(ex)companheiras. O mundo reconhecido como tal deixou de existir, tudo o que
sobrou foram as lembranças de um tempo que não existe mais.
Dois
contos fogem do ordenamento geral. Em Menlo Park, um revisor é
contratado para trabalhar em livro escrito por ghost-writer. Não demora muito
para que ele coloque tudo a perder. No segundo, Marion, uma menina de 13
anos manifesta obsessão sexual por homem mais velho. Esse comportamento é
observado ingenuamente por outra menina – que, aos 11 anos, não consegue
entender direito o que está em jogo.
No
último conto, I/S/L, a banalidade do mal está localizada em uma clínica de
reabilitação. A presença de uma celebridade – acusada de importunação sexual –
modifica comportamentos e cria uma atmosfera peculiar (embora transcorra em
aparente normalidade).
A acidez que corrói cada uma das narrativas de Papai espelha o modo de vida contemporâneo – mistura de ansiedade, sexo e infelicidade. A decadência do Império, por maior que sejam as expectativas, está expressa, no final de cada dia, no medo de fracassar. Então, para aliviar as tensões, para tentar encontrar a utopia prometida pela sociedade de consumo (e que nunca será saciada), poucos conseguem resistir aos paraísos artificiais proporcionados por cocaína, barbitúricos e pornografia.
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Emma Cline |
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