Quem iria ao cemitério reivindicar um morto
que não era seu?
Família é território imaginário, instável,
nômade – oásis onde sentimentos contraditórios oprimem e libertam. Quando se
acrescenta a esse barril de pólvora um pouco de instabilidade emocional, o resultado mais comum
é a perda dos parâmetros que instituem a racionalidade.
A máquina de moer sentimentos, como alguém denominou a família, não costuma perdoar quaisquer deslizes.
A máquina de moer sentimentos, como alguém denominou a família, não costuma perdoar quaisquer deslizes.
Nunca entendi direito o porquê de um
livro extremamente poético, que trata de dois momentos familiares importantes, A História dos Ossos, publicado em 2005, não ter
recebido a devida consideração da crítica ou dos estudos acadêmicos. São apenas
68 páginas, dois contos aparentemente interligados – embora tratem de assuntos e
linguagens completamente diferentes.
No primeiro texto, O cão no sótão, narrado pelo irmão
mais novo, a mãe e os dois filhos se mudam para São Paulo – o pai fica morando
no litoral. Logo depois, o filho mais velho vai morar sozinho. No sótão do
escritório que trabalhava, começa a escrever uma peça de teatro. As mudanças psíquicas
e comportamentais que ocorrem com o irmão mais velho vão sendo registradas com
uma linguagem pesada, emaranhado de vozes indistintas, misturando o real e o
imaginário, a insanidade e a dramaturgia. Em algum momento, quando desabam as
vigas da coerência, o desfecho trágico se transforma em extensão do que estava
sendo anunciado desde a primeira linha do conto.
A segunda história, A história dos ossos, relata várias mortes –
e isso a torna mais humana. Ou seja, mais assustadora. O narrador recebe a notícia
de que houve uma infiltração no túmulo do pai. O cemitério está em obras e
alguém da família precisa resolver a situação. A viagem ao litoral, como uma
espécie de passeio sentimental, reconstrói a ponte afetiva. Para mim, a cidade
sempre fora uma faixa de areia cinza que mudava de tom em direção ao mar. O presente e o passado, integrados, colocam em
evidência um elemento pouco agradável: nada resiste ao desgaste do tempo.
Segurando o embrulho de papel pardo com os ossos paternos, deixa para trás o
cais, o porto, o mar. Deveria procurar pelo crematório, em vez disso entra na barafunda
de ruas estreitas em que se aglomeravam bancos, casas de cambio e comercio,
escritórios de contabilidade, galpões de torrefação, lojinhas de carimbos e
centenas de oficinas miúdas instaladas nos térreos das casas. Nesse labirinto,
onde se confunde a cidade que existia na memória e a cidade por onde está
caminhando, outras urgências se pronunciam. Em um bar, (...) senti uma vontade
estúpida de trepar. O sexo sem amor, o amor distante do sexo, o peso da herança familiar, a tarde modorrenta. Depois de
dirigir por ruas desconhecidas, deixa o carro numa praça. No trapiche, aluga um
barco. Meti o remo na água e fui cavando, cavando devagarinho para dentro do
lagamar. A última morte, talvez a síntese de todas as outras, ocorre quando as mãos
firmes arrebentam o pacote: Com um palmo de largura, virei a boca para baixo e
ouvi uns sons, uns quatro ou cinco sons, só, como um sussurro, um gole no escuro.
O escritor e artista plástico
(xilogravura e escultura) Alberto Martins nasceu em Santos (SP), em 1958.
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