As mais eficazes armadilhas do realismo
literário estão escondidas atrás das informações substantivas, “concretas”. Elementos do verossímil são espalhados pelo
texto com o propósito elementar de negar (de uma forma ou de outra) que a
ficção é produto criado pelo imaginário. Esse truque, que constitui parte
indissociável do discurso, estabelece o ordenamento narrativo.
Datas históricas, locais facilmente
reconhecíveis, situações triviais – vale tudo para que a experiência
sociocultural do leitor se integre com os elementos constitutivos do texto. Alguns
teóricos defendem a tese que o segredo da qualidade literária está nesse
encaixe. Outros... Discordam.
Em Seis Passeios pelos Bosques da
Ficção, Umberto Eco comenta uma experiência bastante divertida. Na noite de 23
para 24 de junho de 1984 ocorreu um grande incêndio em Paris. Casaubon,
personagem de O Pêndulo de Foucault, está caminhando próximo desse local. O problema é que o narrador do romance não
cita o incêndio. Um leitor, que pesquisou jornais da época, reclamou dessa omissão.
Umberto Eco considera um exagero pretender
que uma história de ficção correspondesse inteiramente ao mundo real no qual se
situa. Difícil discordar dessa afirmação. No entanto... Há vários tipos de
leitores e várias maneiras de ler ficção. Assim como há leitores que aceitam
vampiros, lobisomens e bruxos infantojuvenis como verossímeis, também há quem
queira encontrar no texto ficcional um espelho do real. Em outras palavras, essa
mentira saborosa chamada pacto ficcional pode (e deve) ser comparada com uma
salada de frutas – sabores e texturas se confundem no gozo literário.
De qualquer forma, narrativas em que os deslocamentos geográficos são uma característica marcante instituem um tipo especial de discussão sobre o verossímil.
Se a geografia narrativa
for composta ad hoc, como nas Crônicas de Fogo e Gelo (George R. R. Martin),
a consulta frequente aos mapas incluídos em cada um dos volumes fornece
substância ao mundo imaginário. Embora estejam reduzidas ao mundo ficcional, Winterfall,
Pentos e a Muralha ganham o mesmo status de realidade que, a partir de outros
textos, Zenda, Xanadu e Gothan City. O leitor incorpora a topologia imaginária
à geopolítica literária.
Se,
por outro lado, o deslocamento for realizado em compasso on the road, como o
recente A Terrível Intimidade de Maxwell Sim (Jonathan Coe), consultar o mapa
“verdadeiro”, acompanhando o deslocamento do personagem pela Inglaterra e Escócia,
acrescenta um novo (e saboroso) ingrediente ao prazer de ler. Lugares
inimagináveis – mas que existem de fato – ampliam a experiência sensorial da
leitura.
Como a ficção não possui compromisso com
a verdade ou com a mentira, mas trafega entre as duas – flertando com o perigo
e com a confusão – alguns leitores se desesperam. Isso é bom ou ruim? Nem uma coisa nem outra. Ilusão e consistência beiram a sinonímia.
Se o leitor não concordar com esse artifício,
nada mais restará senão abandonar o livro e a leitura. A única verdade possível
na literatura é que cada história inventa as próprias verdades e mentiras. Resta
escolher entre conviver com o mundo preto e branco da objetividade cartesiana ou
mergulhar nas infinitas possibilidades instituídas pela fantasia.
Umberto Eco, autor de Seis Passeios pelos Bosques da Ficção.
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