Não há mais canalhas como antigamente.
Essa constatação elementar não é fruto do saudosismo. Tampouco serve de alívio.
Por diversas razões – nenhuma delas digna de mérito – o romantismo se tornou decadente
e saiu de moda. O refinamento, a criatividade e a sutileza não mais constituem
elementos valorizados pela modernidade. Assumiu o proscênio desse teatro pouco
crível que chamamos de vida a selvageria, a grosseria, a inconveniência e a
maldade (de acordo com as regras mais elementares do realismo).
Segundo o dicionário Aurelião, canalha é
sinônimo de vil, reles, infame, velhaco. São bons adjetivos. Quase invejáveis.
Embora não sirvam para explicar que a canalhice, por definição, não precisa –
digamos – ser cruel ou perversa. Apenas mal-intencionada. O suficiente para praticar amiúde atos
pouco dignos do que se convencionou chamar de elevado comportamento social.
Se alguém, por exemplo, cometer a
imprudência de esquecer a carteira (com documentos e dinheiro) em lugar próximo
de mãos leves e rápidas, qualquer queixa posterior será inútil. O canalha possui
raciocínio instantâneo, é um mestre prestidigitador – desses que dominam a doce
arte da ilusão. Com um amplo arsenal de truques (ópticos, emocionais, físicos), o canalha mostra
que nasceu para seduzir, iludir, enganar. Não é pouca coisa. Ou coisa pouca.
Que, diga-se de passagem, não lhe interessa. O bom canalha – ou o canalha do bem
– não possui escrúpulos, sempre está com disposição para saquear o que for
possível ou o que estiver ao seu alcance. Nunca deixa passar uma oportunidade.
Em um mundo que idolatra o
bom-comportamento e a vigilância intensiva, muitos desses episódios raramente
terminam bem. Na verdade, o mais frequente é acabar mal. Que a desgraça atinge a
todos os espertos com enervante suplício democrático. O destino inglório não
serve de lição ou impedimento para que surja no
horizonte um novo espécime dessa fauna maldita. No mundo dominado pelos
processos de reprodução técnica, a todo instante surge alguém com a pretensão
de ser mais astuto do que os seus semelhantes.
Ao mesmo tempo, o canalha, assim como a onça-pintada
não consegue esconder a cor de sua pelagem, não logra encobrir suas
características mais patéticas. Ou hilárias. A cada instante, como se estivesse
predestinado ao farsesco, produz material capaz de garantir as mais estrondosas
gargalhadas.
Cinco narrativas de seis escritores
constituem a coletânea Meu Querido Canalha, editada em 2004. Não são histórias
edificantes. Muito pelo contrário. E estão centradas em uma espécie particular
de canalha: o conquistador barato. Mais do que atletas sexuais, esses
personagens não economizam lascívia, volúpia, infâmias e outras sem-vergonhices. Azar
de quem estiver próximo.
O texto de Ruy Castro, La Petite Mort,
está centralizado na história de Guilherme, uma espécie de Casanova carioca. Enquanto
relembra as aventuras picarescas do conquistador, o narrador transporta as
cinzas do amigo. O sujeito sofreu um ataque cardíaco enquanto realizava o ato.
O ato sexual. O orgasmo (la petite mort, segundo os franceses) se transforma
em morte gloriosa (la grand mort). Entre um evento e outro, milhares de peripécias,
inclusive a inevitável extorsão policial.
A Ave-Maria de Schubert, de Carlos
Heitor Cony, como cabe a um texto escrito por ex-seminarista, trabalha com
questões básicas: virgindade, sedução, culpa. A descrição que faz de certos
ambientes sórdidos, onde a juventude e os casais unidos pela infidelidade
conjugal costumavam resolver problemas básicos nos anos 50 do século passado, é
surpreendente. Quase um tratado antropológico. Mas, essa parte da narrativa não
passa de um preâmbulo para um desfecho hilário.
O Bom Canalha foi escrito por Geraldo
Carneiro, a partir de uma sinopse de Bráulio Pedroso. Entre o mito do filho
pródigo e o golpe do baú, muitas trapaças são possíveis. A história (que talvez
não seja verdadeira) de Luís (ou Alberto) transita por terreno pantanoso. Ele
ambiciona enganar Matilde e Adriana. Enquanto articula tomar o dinheiro da
primeira, frequenta a cama da segunda.
Aldir Blanc é um dos melhores humoristas
brasileiros. Infelizmente, poucos sabem disso. Alguns de seus contos e crônicas,
que retratam de forma primorosa a vida suburbana, são antológicos. Homem que é
Homem não é exceção. O narrador conta um episódio cheio de detalhes acessórios
ocorrido no governo Getúlio Vargas. Cafajestada. Das boas. Envolvendo fêmea.
Linda de merecer adoração, uma verdadeira musa de letra do Orestes Barbosa. Como
compete ao tema, o inevitável final infeliz dá o ar da graça, perdão, da
desgraça.
O capítulo final coube ao Marcelo
Madureira – que não negou fogo e seguiu os preceitos do que há de mais escroto na
malandragem carioca. O narrador em primeira pessoa, sem economizar detalhes (os
piores), relata, em Agnus Dei, uma história de sedução. Sem a mínima piedade encantou a viúva do General. Aproveitou a carência e mandou ver. Ou melhor,
fez coisas do arco da velha – na velha. Inacreditável. O remorso no dia seguinte
– da senhora. No intervalo da narrativa, o garanhão ainda teve cinismo
suficiente para contar outra aventura sexual ocorrida em casa de suingue. Maluquices
de quem sempre disse a quem quisesse ouvir Eu sou do bem. Bem canalha.
Meu Querido Canalha é livro para ler
em final de semana. Como diversão. Sem pretensão de ensinar coisa alguma.
Apenas uma fonte para grandes gargalhadas. Afinal, dentro de cada um de nós
(homens e mulheres) habita um canalha - que sempre arranja uma desculpa esfarrapada para não pagar o aluguel.
(P.S: pela ordem, fotos de Ruy Castro, Carlos Heitor Cony, Aldir Blanc, Geraldo Carneiro e Marcelo Madureira)
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