A literatura alimenta o leitor com
pequenos prazeres. Os melhores são inesperados. Desafortunadamente, com o
avanço das técnicas narrativas e a falta de imaginação de alguns escritores e
editores, essas surpresas se tornaram raras. A pasteurização da linguagem e dos
temas literários rebaixou a criatividade narrativa. Histórias que não se
enquadram no padrão instituído pelos interesses econômicos e pelo mercado de
consumo são descartadas. Ou melhor, não são publicadas.
Felizmente, por razões que fogem ao
entendimento, algo sempre (ou quase sempre) escapa da normatização. Das
Paredes, Meu Amor, os Escravos nos Contemplam, de Marcelo Ferroni, talvez
possa ser considerado como uma espécie de curto-circuito no comportamento bem-educado
(e sem identidade) que rege a produção brasileira contemporânea. Não é pouco,
não é muito, mas parece ser suficiente para distingui-lo no mar de mesmices,
embora não identifique o que realmente importa.
O título não é fácil de lembrar. Parece
se referir a alguma citação latina, dessas que não interessam a ninguém, seja
porque estão muito distantes no tempo, seja porque remetem a algum tipo de
conhecimento que não mais faz parte do cotidiano do leitor. Enfim, o seu valor está em
introduzir algum estranhamento no contexto.

E isso leva ao primeiro ponto problemático: as primeiras páginas de Das Paredes, Meu Amor, os Escravos nos Contemplam caracterizam um romance morno, pretensamente moderno, sem grandes novidades, há tantos outros similares com esse andamento. A possibilidade de ser apenas uma comédia de costumes, adejando ao redor de corações fragilizados pela ausência de romantismo, não pode ser descartada.
Então, se o leitor considerar seriamente
o enredo, repleto de descrições, esparramado pelas páginas do livro como
instrumento da postergação narrativa, complicação que torna necessário ler
páginas e mais páginas para obter alguma informação relevante, talvez haja
algumas dificuldades na leitura. Os ansiosos provavelmente não gastarão o fôlego
tentando entender a paixão amorosa que move Humberto Mariconda, o frustrado
escritor que cumpre a dupla função de narrador e personagem.
Humberto está apaixonado por mulher de
classe econômica vários níveis acima do dele. Como de praxe, a paixão não encontra
correspondência. “Grudento”, ele aceita passar um final de semana na mansão da
família de Júlia, na esperança de se reaproximar da moça. Peixe fora d’água,
descobre que o esporte favorito dos ricos oscila entre brigar por dinheiro e humilhar
os pobres – no caso, ele.
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O segundo ponto problemático surge no
início da segunda parte do texto, quando o leitor percebe, depois de 140
páginas, que está lendo um romance policial. O desaparecimento de Carla, que
trabalha como restauradora da mansão centenária, parece não ter força
suficiente para impulsionar o imobilismo geral. Somente quando o patriarca da
família, Ricardo Damasceno, é assassinado em uma sala fechada, vedada aos
outros hóspedes da mansão, é que surge alguma movimentação dramática. Qualquer lembrança
com um daqueles enigmas literários que fazem as delícias dos admiradores de
Agatha Christie não constitui mera coincidência.
A longa noite sem luz, os diálogos
repletos de ameaças veladas, os cadáveres – essa é a melhor parte do romance. A
ação narrativa se torna mais lúdica, mais próxima do entretenimento. Provavelmente, uma das causas desse
relaxamento na tensão está na desconstrução dos gêneros literários, na
permeabilidade das dinâmicas que instituem a trama narrativa. O inevitável desfecho e suas trapalhadas surge
com o clarear do dia, com o fim do delírio e com o despertar da consciência –
tudo volta ao normal, inclusive a carência afetiva de Humberto.
P.S: Particularmente irritante é a
maneira com que o narrador nomeia dois dos personagens. Em alguns trechos Julia
se transforma em “pequena” e Carlos é o “garoto”. Bobagem.
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