A história representada e a história escrita ainda
correm por linhas paralelas, mas estão tendendo a juntar-se. (Edmund Wilson, in
Rumo à Estação Finlândia)

Por diversos motivos, seja por ter feito
uma leitura política equivocada, seja por vaidade intelectual (estava convencido
de que era mais inteligente do que os outros revolucionários), Trótski não conseguiu
impedir – depois da morte de Lenin, em 1924 – que Liev Borisovitch Kamenev, Gregori
Evseievitch Zinoviev (nascido Ovsei-Gershon Aronovitch Radomyslsky) e Nikolai
Ivanovitch Bukharin se tornassem aliados políticos do arrivista Iossif
Vissarionovitch Djugashvili, também chamado de Josef Stalin. O georgiano, adepto
da força bruta, depois de controlar o Politítchedkoe Byurô (Politburo), assumiu o poder. O que se
seguiu é um exemplo clássico de lição histórica: as revoluções só se tornam
completas quando devoram os seus filhos mais queridos. Para não ser transformado
em mártir, Trótski precisou seguir para um novo exílio, em 1929. Aqueles que o
traíram, Kamenev, Zinoviev e Bukharin, não tiveram a mesma sorte. Depois de
processos judiciais fraudulentos, foram expurgados do poder e fuzilados – em 1936.
Quatro anos depois, vitima de uma trama diabólica, Trótski foi assassinado na
Cidade do México.
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Leonardo Padura |
O romance histórico O Homem que Amava
os Cachorros, do cubano Leonardo Padura, retoma, ficcionalmente, ou melhor,
arqueologicamente, a história que é comum a alguns dos personagens mais importantes do
século XX.
Tour de force narrativo, o livro procura manter-se longe do maniqueísmo político e o mais próximo possível da essência literária. Oscilando entre a descrição da brutalidade stalinista e do fanatismo trotskista, consegue se esquivar das peças publicitárias. Para o bem e para o mal, Stalin e Trótski eram faces de uma mesma moeda. E, se os papeis fossem invertidos, provavelmente muito pouco teria mudado na história russa – embora Liev Davidovitch fosse um pouco, não muito, mais humano do que Iossif Vissarionovitch.
Tour de force narrativo, o livro procura manter-se longe do maniqueísmo político e o mais próximo possível da essência literária. Oscilando entre a descrição da brutalidade stalinista e do fanatismo trotskista, consegue se esquivar das peças publicitárias. Para o bem e para o mal, Stalin e Trótski eram faces de uma mesma moeda. E, se os papeis fossem invertidos, provavelmente muito pouco teria mudado na história russa – embora Liev Davidovitch fosse um pouco, não muito, mais humano do que Iossif Vissarionovitch.
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Liev Davidovitch Bronstein |
O texto está dividido em vários planos
narrativos. O principal, focalizado na figura do escritor cubano Iván Cárdenas Maturell,
serve de epicentro para que outros personagens possam aflorar.
Um sujeito, que diz se chamar Jaime López, faz um relato impressionante. E o faz de tal forma que deixa Iván ansioso por ouvir cada capítulo
dessa narrativa. Ao mesmo tempo, por vias transversas, não-verbais, parece fornecer
autorização para que o cubano possa expor para outras pessoas o que está
ouvindo. Ou seja, quer que Iván transforme tudo o que ele está dizendo em
um livro. Para que isso se complete, antes de ser devorado por um câncer
devastador, Jaime López envia ao escritor uma longa carta, mais de cinquenta
folhas escritas à mão numa caligrafia muito espremida, quase infantil e,
depois, uma cópia do livro que foi escrito por Luis Mercader.
Ao mesmo tempo em que muitas coisas se esclarecem, outras tantas se misturam com a perplexidade. Iván não consegue compreender como foi que se tornou possível a sua participação nessa confusão: Como podia alguém escapar da história para ir passear com dois cães e um cigarro na boca por uma praia de minha realidade?
Ao mesmo tempo em que muitas coisas se esclarecem, outras tantas se misturam com a perplexidade. Iván não consegue compreender como foi que se tornou possível a sua participação nessa confusão: Como podia alguém escapar da história para ir passear com dois cães e um cigarro na boca por uma praia de minha realidade?

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Jaime Ramón Mercader del Rio Hernández |
Após Stalin assumir o controle
estatal, a vida de Trótski se transforma em um martírio. Simultaneamente à
penúria (econômica, emocional) produzida por um novo exílio, ainda há uma lenta
fila de homens mortos. Dolorosas são as mortes dos filhos: Nina Nevelson e Zinaida (Zina) Volkova, filhas de Alexandra Lvovna Sokolovskaia, Liev
(Liova) Lvovitch Sedov e Sergei (Serioja) Lvovitch Sedov, filhos de Natalia Ivanovna Sedova.
Dos familiares mais próximos, somente Natalia Ivanovna Sedova (a viúva), Vsevolod (Sieva, Esteban) Platonovitch Volkov (filho de Zina) e Julia Sergeevna Rubinshtein (filha de Sergei), conseguem escapar do massacre promovido pelos stalinistas. Não satisfeito em secar todas as fontes vitais que alimentavam a família de Liev Davidovitch, centenas de intelectuais trotskistas foram mortos. Essa carnificina não se mostra suficiente. Stalin quer mais. Muito mais. Quer a morte de Trótski – que, por algum mecanismo psicológico, causa grande mal-estar ao senhor de Moscou.
Dos familiares mais próximos, somente Natalia Ivanovna Sedova (a viúva), Vsevolod (Sieva, Esteban) Platonovitch Volkov (filho de Zina) e Julia Sergeevna Rubinshtein (filha de Sergei), conseguem escapar do massacre promovido pelos stalinistas. Não satisfeito em secar todas as fontes vitais que alimentavam a família de Liev Davidovitch, centenas de intelectuais trotskistas foram mortos. Essa carnificina não se mostra suficiente. Stalin quer mais. Muito mais. Quer a morte de Trótski – que, por algum mecanismo psicológico, causa grande mal-estar ao senhor de Moscou.
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Iossif Vissarionovitch Djugashvili |
A História, assim como a Medusa, costuma
destruir aqueles que ousam olhar diretamente para o seu rosto. Algum dia, (...),
se reconhecerá que foram os erros dos revolucionários, mais que o empenho dos
imperialistas, que atrasaram as grandes mudanças da sociedade humana, percebe o personagem
Liev Davidovitch em um dos momentos cruciais da narrativa. No mesmo sentido, a
voz do narrador interrompe a descrição dos fatos históricos para concluir
que Muitos, (...), se veriam obrigados a reconhecer que o stalinismo não tinha
suas raízes no atraso da Rússia, nem no ambiente imperialista hostil, como
chegou a ser dito, mas na incapacidade do proletariado de se transformar em
classe governante. Teria que admitir também que a União Soviética não fora mais
do que a precursora de um novo sistema de exploração e que a sua estrutura
política tinha inevitavelmente de gerar uma nova ditadura, maquiada, quando
muito, com outra retórica...
Política é retórica, é discurso, é
aparência, é teatro – como tudo na vida. Embora, em alguns momentos, a energia
vital tente – a qualquer preço – negar toda e qualquer canalhice. Na visão de Iván, a vida em Cuba
(ou na Rússia) pode ser facilmente resumida em poucas frases: era evidente que
estávamos mergulhados no fundo de uma atrofiada escala social na qual
inteligência, decência, conhecimento e capacidade de trabalho davam lugar à
habilidade, à proximidade do dólar, à posição política, a ser filho, sobrinho
ou primo de alguém, à arte de resolver, inventar, medrar, fugir, fingir, roubar
tudo que fosse passível de roubo. E ao cinismo, à porra do cinismo.
Por não compactuar com esse cenário de
degradação, Iván e Liev Davidovitch pagam o preço de estarem jogando uma partida
de xadrez sofisticada, repleta de lances obscuros e combinações complicadas. A inevitável
derrota se explica na falta de habilidade para calcular todas as variantes,
todas as possibilidades. No fim, os adversários, obviamente mais rudes, mais
ignorantes, são aqueles que vencem o jogo.
A coda dessa sinfonia macabra está na
troca de narrador, no último capítulo. Como se fosse o herdeiro da tragédia,
restou a Daniel Fonseca Ledesma, grande amigo de Iván Cárdenas Maturell, contar
o desfecho da narrativa. Também lhe cabe lembrar que em das muitas conversas
que tiveram, ouviu o amigo lhe dizer que Eu também sou um fantasma... –
síntese mais do que eloquente da crueldade com que a política (e, por extensão, a literatura) trata homens como
Liev Davidovitch e Iván Cárdenas Maturell.
gostei
ResponderExcluire estou lendo o homem que amava os cachorros