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segunda-feira, 16 de novembro de 2015

A IMENSIDÃO ÍNTIMA DOS CARNEIROS

“O que tem nesse caderno, meu pai?”, Sami observa que ele o segura com força.
“Contas, meu filho. Contas a pagar.”
(A Imensidão Íntima dos Carneiros, Marcelo Maluf)


A influência árabe na literatura brasileira ainda não recebeu o reconhecimento que lhe cabe por direito. 

Os livros escritos por Raduan Nassar, Milton Hatoum, Salim Miguel, Alberto Mussa, George Bourdoukan e Whisner Fraga, entre outros, seduzem o leitor, seja revivendo os mitos que acompanham seus antepassados, seja contrastando o modo de vida presente com a recuperação do passado. São narrativas em que a união da linguagem poética com as variedades tonais da prosa produz momentos encantatórios de inigualável beleza. Simultaneamente, enriquecem a literatura brasileira.

O romance A Imensidão Íntima dos Carneiros, de Marcelo Maluf, amplia esse horizonte – investigando, de forma muito particular, alguns dos conflitos que orbitam em torno do núcleo familiar. Com a intensidade de uma faca afiada – que corta um pedaço de carne, da própria carne –, o narrador (que se chama Marcelo), através da tessitura dramática, vai construindo, lentamente, uma ponte para que o passado possa atravessar a escuridão em que se encontra, e – ao mostrar os segredos que esconde – libertar as novas gerações da carga ancestral. O esclarecimento surge como resultado do embate entre a lucidez e a dor.

Assaad Simão Maluf, filho do libanês Simão, fornece o fio condutor para iluminar a história familiar. Seus escritos, recuperados (ficcionalmente) pelo neto, organizam uma narrativa traumática, repleta de episódios tristes, e que não está ligada à economia da expressão pública dos sentimentos. O exílio geográfico e afetivo, em terras brasileiras, mais especificamente em Santa Bárbara D’Oeste, interior do estado de São Paulo, constitui motivo suficiente para que o passado jamais seja esquecido. Independente da quantidade de vezes que Assaad reveja mentalmente os acontecimentos que o afastaram do Líbano, uma imagem jamais sairá de sua mente: os irmãos, Adib e Rafiq, sendo enforcados pelos soldados turcos. Na mesma moldura, ao lado do pai, da mãe e dos irmãos, os versos finais de um poema escrito por Adib ecoam com a crueldade de um anátema: Dançam de mãos dadas / a minha covardia e a minha coragem.

Marcelo Maluf
Enquanto escreve, Assaad interpreta o passado como se fosse alguma doença incurável. Por maiores que sejam as medidas preventivas para que os acontecimentos esquecidos em algum canto da memória não voltem à tona, isso se revela impossível. O passado se renova constantemente na mente (e na escrita) – como dívidas que nunca poderão ser pagas. A vida custa caro.

Diante da imagem primordial (Assaad sentado à janela, escrevendo), está a essência do relato proposto pelo neto, pois O tempo de calar a dor ficou para trás.

Marcelo, filho de Michel, neto de Assaad, mais do que o narrador das complicações familiares, quer entender a história que o une aos homens de quem descende. Sabe que, quando isso acontecer, poderá se situar no mundo – e descansar. A Imensidão Íntima dos Carneiros, fruto saboroso da união entre a imaginação literária, o afeto e a poesia, é a comprovação cabal desse propósito.


TRECHO ESCOLHIDO

Rafiq, meu irmão mais velho, era o mais parecido com o pai. Os olhos atemorizados, como se estivesse observando a chegada de uma tempestade de areia no deserto. Os ombros lançados para frente e a boca sempre seca, arroxeada, com rachaduras. Mas não era apenas em sua herança física que se pareciam. Era cheio de surpresas tanto quanto o pai.
Lembro-me de quando apareceu nu em nosso quintal. Explicou que no caminho da escola para casa, devaneou sobre o quanto as roupas aprisionam o nosso pensamento e que tinha tido um péssimo desempenho na prova de história por estar vestido. Se estivesse nu, suas ideias fluiriam. 

“Se me colocassem o teste aqui na minha frente agora, eu saberia todas as respostas”. O pai correu atrás dele por toda a aldeia, e gritou: “Rafiq, o que eu fiz para merecer essa humilhação?”

Naquela noite, Rafiq dormiu nu, no relento. Era início do inverno e não fosse a mãe levar uma coberta para ele, meu irmão teria congelado.

“Você pode até o acobertar, mulher, mas essa noite ele não entra em casa. Quero saber se as suas ideias resistem melhor ao frio ou ao calor.” O pai o provocava.

Pela manhã, Rafiq pediu permissão ao pai para ir se vestir. 

“E o que mais você tem a dizer, meu filho?”

“Sem querer desrespeitá-lo, meu pai, não foi o cobertor que a mãe me deu que me tirou o frio, foram as ideias em meu corpo livre que me aqueceram. Mesmo a sua frieza não pôde ser maior que a compaixão de minha mãe. E foi essa ideia que me salvou de congelar o corpo lá fora. Aqueceu tudo aqui dentro.” A fala de Rafiq atingiu Simão.

O pai, com a voz desorientada e os olhos frouxos, só foi capaz de dizer ao meu irmão que se vestisse. O dia seria longo e de muito trabalho.

“Talvez o trabalho o faça compreender, meu filho, que os melhores pensamentos que você possa ter nascem da terra e para ela retornam. E são melhores quando deixam de vagar e se concretizam pelo labor. A terra há de cobrir um dia o seu corpo com a delicadeza com que uma mãe cobre o seu filho e o embala para dormir. Não há liberdade maior, meu filho, do que a alma separada da carne.”

Rafiq parecia não prestar atenção às palavras do pai. Mantinha o olhar mirando o topo da montanha.

“Rafiq, você está me ouvindo?, Simão gritou.

“Um dia você também quis voar, meu pai, por que não consegue compreender o meu bater de asas?”

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