Tenho umas cinco edições diferentes de Bartleby, o escrivão (Bartleby, the scrivener), narrativa canônica de Herman
Melville, publicada inicialmente no volume The Piazzas Tales, de 1856. Para surpresa geral, acabo de comprar mais duas edições do livro. Será que enlouqueci? Na falta de prova
psiquiátrica, reúno os volumes que consegui localizar nas estantes e os coloco
diante de mim. Estou confuso. Será que preciso de todos eles? Será que não
deveria doar uma parte para a Biblioteca Pública? As perguntas se mostraram ineficientes
quando parei para pensar nas vicissitudes da vida. E, por mais paradoxal que isso possa parecer,
percebo que talvez tenha adquirido outros exemplares do texto. Onde estão? Não
sei. Mesmo que os céticos recusem o que parece ser inequívoco, cabe lembrar ao
mundo que os livros possuem pernas. E caminham – para longe daqueles que os
estão procurando. Só aparecem quando lhes é conveniente. Indiferente à luz que
ilumina cada um dos dias da existência humana na Terra, quando o assunto é livros
desaparecidos, não adianta reclamar. São os livros que possuem os bibliófilos.
E, como cabe aos feitores de escravos, sempre exigem especial atenção. São eles (os
livros) que obrigam (abrigam?) um regime de trabalho. Há que cuidar de cada um
deles. Urge limpá-los (poeira, insetos, marcas causadas por objetos que alguém
esqueceu em lugar inadequado). É necessário evitar as intempéries climáticas.
Livros são inimigos mortais do calor e dos líquidos. Além disso, exigem espaço.
Isso significa – entre outras coisas – que os móveis devem ser afastados para que
as estantes ocupem todas as paredes da casa. Como se essa confusão não fosse o bastasse,
ainda há o incômodo diante daquelas pessoas que olham estranho para quem se
deixa levar pela paixão pelos livros. Olha lá, o maluco dos livros! – diz a
garota que não se cansa de olhar para as atualizações nas redes sociais. Pois é,
muitas vezes o bibliófilo se transforma em personagem tragicômico. Ou em uma
espécie de ilha social (cercado de livros por todos os lados). Exemplos
literários desse delírio não faltam: Peter Kien (Auto-de-Fé, Elias Canetti),
Carlos Brauer (A Casa de Papel, Carlos María Domínguez), Lucas Corso (O Clube Dumas,
Arturo Pérez-Reverte), Antoine Roquentin e, o seu oposto, o Autodidata (A Náusea,
Jean-Paul Sartre), Cliff Janeway (em diversos romances policiais de John
Dunning).
La vida es sueño, dizia Pedro Calderón de la Barca. Volto o olhar para as edições do Bartleby que habitam minha biblioteca. Cada um dos livros possui qualidades particulares. Ou seja, elementos que se destacam – significativamente – no contexto literário. Como esquecer a apresentação do Jorge Luis Borges que acompanha a edição da José Olympio? Borges considera Moby Dick como a obra-prima de Herman Melville (Foi o romance infinito que determinou sua glória) e quase se esquece de Bartleby. No entanto, a maior qualidade do comentário está na comparação (ou não comparação) entre Bartleby e algumas narrativas de Kafka. Abriu-se, a partir desse instante, uma avenida na direção da literatura comparada e da exegese do Bartleby. Quem quiser entender melhor essa vertente crítica, precisa ler o posfácio escrito por Modesto Carone, publicado na edição da Cosac Naify.
A edição da José Olympio provavelmente é
o volume mais indicado para quem tem contato, pela primeira vez, com o livro.
Foi com esse volume debaixo do braço, uns dois anos atrás, que participei de um
pequeno seminário em sala de aula. O resultado final ficou bem aquém do
desejado. A proposta de Bartleby – contrária à lógica que envolve as relações de
trabalho – não conseguiu seduzir meus alunos. Claro que chegamos a um acordo
sobre os conceitos básicos do livro, mas faltou o salto de qualidade. No
mundo moderno (ambição, eficiência, carreira profissional), o deus dinheiro
costuma acenar alegremente – muitas vezes sem perceber que o único sorriso
verdadeiro é o de Bartleby!
O volume publicado pela Cosac Naify, na
falta de melhor definição, é lindo. Edição para colecionadores – lembrando um tempo
anterior a era da reprodutibilidade técnica, em que a produção do saber não
separava o artesanato e o intelecto em compartimentos distintos. De qualquer
maneira, cabe esclarecer que não pretendia adquiri-lo. Nessas andanças por
livrarias e sebos que caracterizam o caminhar dos bibliófilos, o encontrei algumas
vezes. Havia a esperança de que alguém, em um gesto de nobreza e amizade,poderia
presentear-me com um exemplar... Infelizmente, isso não aconteceu. Só comprei o
livro porque ocorreu um desacerto. História longa, que não quero descrever
aqui. Desacerto que deu certo. O fato concreto é que o volume agora está a fazer
companhia aos outros. E isso é o que importa. Ah, que me perdoem os artistas
plásticos, mas, quando tive essa edição em mãos, quase mandei emoldurá-la.
Também comprei uma das edições da Autêntica
– aquela que é uma espécie de apêndice para um ensaio do Giorgio Agamben (de quem,
convém esclarecer, ninguém pode me acusar de ser admirador). Invertendo o que
considero a ordem natural das coisas, esse livro fornece destaque ao texto do
filósofo italiano. De imediato, uma pergunta se destaca: por que o editor não
escolheu imprimir em separado cada um dos textos? Depois de breve pesquisa na
Internet, descobri que, de certa forma, imprimiu. Há uma edição restrita ao
texto de Herman Melville. O problema é que eu comprei a versão problemática. Tudo
bem, o problema sou eu. Além disso, o texto do Agamben agrega valor à narrativa de Melville. Agregar valor? Epa,
isso não está correto! Ninguém deveria ter autorização para falar de Bartleby utilizando uma expressão contrária ao
entendimento existencial do personagem. Creio que o filósofo italiano também concordaria com essa restrição. O imobilismo de
Bartleby (expresso no mantra Acho melhor não ou Prefiro não fazer ou Preferiria não – dependendo da tradução escolhida para I would prefer not to) se
opõe a qualquer análise acumulativa. A ética da submissão aos valores
produzidos pelo trabalho entra em rota de colisão com um indivíduo que
transforma a si mesmo em obstáculo político para a sociedade utilitarista. Essa
metamorfose atordoa a simplicidade daqueles que adicionam a sobrevivência
física com a negação intelectual.
Em Bartleby, o escrivão quase nada
acontece. Contratado por um escritório de advocacia para copiar diversos
documentos legais, em determinado momento Bartleby, sem qualquer razão
aparente, decide não mais realizar o trabalho. Depois de demitido, se recusa a
deixar o escritório – onde passa a morar. Denunciado à polícia, acaba sendo
preso e morre de inanição, após rejeitar qualquer tipo de alimentação.
A narrativa é conduzida pela voz perplexa do advogado, que em nenhum momento consegue compreender a conduta de seu ex-empregado.
A narrativa é conduzida pela voz perplexa do advogado, que em nenhum momento consegue compreender a conduta de seu ex-empregado.
Muitos leitores modernos se iludem
imaginando que Bartleby quer os benefícios do direito à preguiça ou do ócio criativo ou de quaisquer
outros privilégios conexos à discussão que contrapõe o dever e o niilismo. Essa
possibilidade analítica confirma que há várias interpretações possíveis para o
livro. No entanto, a insubordinação de Bartleby possui outra origem. Agamben
utiliza o conceito filosófico da contingência (um ser que pode ser e, ao
mesmo tempo, não ser) para comentar o curto-circuito comportamental. É uma
explicação muito complicada para o leitor comum. Não convence. Do mesmo modo,
análises de caráter econômico (liberais ou marxistas) parecem deixar de lado o
elemento mais importante: a criação literária. O mesmo vale para a psicanálise,
que é muito esquemática.
Sobra, então, o quê? Ora, a fruição de
encontrar um personagem literário que realiza a sua função narrativa dizendo
não. A implosão do lugar-comum que contamina o imaginário do leitor, o final
feliz, confirma que a inconformidade é um elemento significativo para a expressão literária. Nesse sentido, Bartleby ultrapassa a dimensão de figura de papel e,
na medida do possível, se transforma em humano. É o que basta para torná-lo imortal.
P. S: Há uma versão cinematográfica estadunidense (Dir. Jonathan Parker, 2001) e que eu não vi. Segundo a Wikipédia, The film diverges from Melville's story, setting it in a modern office and adding sitcom-style humor, with an element of surrealism.
Lamento que o Charles Cosac tenha "preferido não fazer". Nunca mais, como dizia o corvo, teremos belas edições da extinta Cosac Naify.
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