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quinta-feira, 26 de novembro de 2015

UMA OU DUAS COISAS QUE SEI SOBRE BARTLEBY, O ESCRIVÃO


Tenho umas cinco edições diferentes de Bartleby, o escrivão (Bartleby, the scrivener), narrativa canônica de Herman Melville, publicada inicialmente no volume The Piazzas Tales, de 1856. Para surpresa geral, acabo de comprar mais duas edições do livro. Será que enlouqueci? Na falta de prova psiquiátrica, reúno os volumes que consegui localizar nas estantes e os coloco diante de mim. Estou confuso. Será que preciso de todos eles? Será que não deveria doar uma parte para a Biblioteca Pública? As perguntas se mostraram ineficientes quando parei para pensar nas vicissitudes da vida. E, por mais paradoxal que isso possa parecer, percebo que talvez tenha adquirido outros exemplares do texto. Onde estão? Não sei. Mesmo que os céticos recusem o que parece ser inequívoco, cabe lembrar ao mundo que os livros possuem pernas. E caminham – para longe daqueles que os estão procurando. Só aparecem quando lhes é conveniente. Indiferente à luz que ilumina cada um dos dias da existência humana na Terra, quando o assunto é livros desaparecidos, não adianta reclamar. São os livros que possuem os bibliófilos. E, como cabe aos feitores de escravos, sempre exigem especial atenção. São eles (os livros) que obrigam (abrigam?) um regime de trabalho. Há que cuidar de cada um deles. Urge limpá-los (poeira, insetos, marcas causadas por objetos que alguém esqueceu em lugar inadequado). É necessário evitar as intempéries climáticas. Livros são inimigos mortais do calor e dos líquidos. Além disso, exigem espaço. Isso significa – entre outras coisas – que os móveis devem ser afastados para que as estantes ocupem todas as paredes da casa. Como se essa confusão não fosse o bastasse, ainda há o incômodo diante daquelas pessoas que olham estranho para quem se deixa levar pela paixão pelos livros. Olha lá, o maluco dos livros! – diz a garota que não se cansa de olhar para as atualizações nas redes sociais. Pois é, muitas vezes o bibliófilo se transforma em personagem tragicômico. Ou em uma espécie de ilha social (cercado de livros por todos os lados). Exemplos literários desse delírio não faltam: Peter Kien (Auto-de-Fé, Elias Canetti), Carlos Brauer (A Casa de Papel, Carlos María Domínguez), Lucas Corso (O Clube Dumas, Arturo Pérez-Reverte), Antoine Roquentin e, o seu oposto, o Autodidata (A Náusea, Jean-Paul Sartre), Cliff Janeway (em diversos romances policiais de John Dunning).

La vida es sueño, dizia Pedro Calderón de la Barca. Volto o olhar para as edições do Bartleby que habitam minha biblioteca. Cada um dos livros possui qualidades particulares. Ou seja, elementos que se destacam – significativamente – no contexto literário. Como esquecer a apresentação do Jorge Luis Borges que acompanha a edição da José Olympio? Borges considera Moby Dick como a obra-prima de Herman Melville (Foi o romance infinito que determinou sua glória) e quase se esquece de Bartleby. No entanto, a maior qualidade do comentário está na comparação (ou não comparação) entre Bartleby e algumas narrativas de Kafka. Abriu-se, a partir desse instante, uma avenida na direção da literatura comparada e da exegese do Bartleby. Quem quiser entender melhor essa vertente crítica, precisa ler o posfácio escrito por Modesto Carone, publicado na edição da Cosac Naify.

A edição da José Olympio provavelmente é o volume mais indicado para quem tem contato, pela primeira vez, com o livro. Foi com esse volume debaixo do braço, uns dois anos atrás, que participei de um pequeno seminário em sala de aula. O resultado final ficou bem aquém do desejado. A proposta de Bartleby – contrária à lógica que envolve as relações de trabalho – não conseguiu seduzir meus alunos. Claro que chegamos a um acordo sobre os conceitos básicos do livro, mas faltou o salto de qualidade. No mundo moderno (ambição, eficiência, carreira profissional), o deus dinheiro costuma acenar alegremente – muitas vezes sem perceber que o único sorriso verdadeiro é o de Bartleby!


O volume publicado pela Cosac Naify, na falta de melhor definição, é lindo. Edição para colecionadores – lembrando um tempo anterior a era da reprodutibilidade técnica, em que a produção do saber não separava o artesanato e o intelecto em compartimentos distintos. De qualquer maneira, cabe esclarecer que não pretendia adquiri-lo. Nessas andanças por livrarias e sebos que caracterizam o caminhar dos bibliófilos, o encontrei algumas vezes. Havia a esperança de que alguém, em um gesto de nobreza e amizade,poderia presentear-me com um exemplar... Infelizmente, isso não aconteceu. Só comprei o livro porque ocorreu um desacerto. História longa, que não quero descrever aqui. Desacerto que deu certo. O fato concreto é que o volume agora está a fazer companhia aos outros. E isso é o que importa. Ah, que me perdoem os artistas plásticos, mas, quando tive essa edição em mãos, quase mandei emoldurá-la.

Também comprei uma das edições da Autêntica – aquela que é uma espécie de apêndice para um ensaio do Giorgio Agamben (de quem, convém esclarecer, ninguém pode me acusar de ser admirador). Invertendo o que considero a ordem natural das coisas, esse livro fornece destaque ao texto do filósofo italiano. De imediato, uma pergunta se destaca: por que o editor não escolheu imprimir em separado cada um dos textos? Depois de breve pesquisa na Internet, descobri que, de certa forma, imprimiu. Há uma edição restrita ao texto de Herman Melville. O problema é que eu comprei a versão problemática. Tudo bem, o problema sou eu. Além disso, o texto do Agamben agrega valor à narrativa de Melville. Agregar valor? Epa, isso não está correto! Ninguém deveria ter autorização para falar de Bartleby utilizando uma expressão contrária ao entendimento existencial do personagem. Creio que o filósofo italiano também concordaria com essa restrição. O imobilismo de Bartleby (expresso no mantra Acho melhor não ou Prefiro não fazer ou Preferiria não – dependendo da tradução escolhida para I would prefer not to) se opõe a qualquer análise acumulativa. A ética da submissão aos valores produzidos pelo trabalho entra em rota de colisão com um indivíduo que transforma a si mesmo em obstáculo político para a sociedade utilitarista. Essa metamorfose atordoa a simplicidade daqueles que adicionam a sobrevivência física com a negação intelectual.


Em Bartleby, o escrivão quase nada acontece. Contratado por um escritório de advocacia para copiar diversos documentos legais, em determinado momento Bartleby, sem qualquer razão aparente, decide não mais realizar o trabalho. Depois de demitido, se recusa a deixar o escritório – onde passa a morar. Denunciado à polícia, acaba sendo preso e morre de inanição, após rejeitar qualquer tipo de alimentação. 

A narrativa é conduzida pela voz perplexa do advogado, que em nenhum momento consegue compreender a conduta de seu ex-empregado.     

Muitos leitores modernos se iludem imaginando que Bartleby quer os benefícios do direito à preguiça ou do ócio criativo ou de quaisquer outros privilégios conexos à discussão que contrapõe o dever e o niilismo. Essa possibilidade analítica confirma que há várias interpretações possíveis para o livro. No entanto, a insubordinação de Bartleby possui outra origem. Agamben utiliza o conceito filosófico da contingência (um ser que pode ser e, ao mesmo tempo, não ser) para comentar o curto-circuito comportamental. É uma explicação muito complicada para o leitor comum. Não convence. Do mesmo modo, análises de caráter econômico (liberais ou marxistas) parecem deixar de lado o elemento mais importante: a criação literária. O mesmo vale para a psicanálise, que é muito esquemática.
 
Herman Melville (1819-1891)

Sobra, então, o quê? Ora, a fruição de encontrar um personagem literário que realiza a sua função narrativa dizendo não. A implosão do lugar-comum que contamina o imaginário do leitor, o final feliz, confirma que a inconformidade é um elemento significativo para a expressão literária. Nesse sentido, Bartleby ultrapassa a dimensão de figura de papel e, na medida do possível, se transforma em humano. É o que basta para torná-lo imortal.

P. S: Há uma versão cinematográfica estadunidense (Dir. Jonathan Parker, 2001) e que eu não vi. Segundo a Wikipédia, The film diverges from Melville's story, setting it in a modern office and adding sitcom-style humor, with an element of surrealism.

Um comentário:

  1. Lamento que o Charles Cosac tenha "preferido não fazer". Nunca mais, como dizia o corvo, teremos belas edições da extinta Cosac Naify.

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