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segunda-feira, 23 de novembro de 2015

OS ÉGUAS

Os Éguas, de Edyr Augusto, ganhou, na França, o prêmio Camaleón para o melhor romance estrangeiro publicado em 2015. Foi uma surpresa. Para o público. Para aqueles que estudam a literatura brasileira. Mais do que uma prova de que parte da produção literária nacional está contaminada pela influência dos preconceitos geográficos (a narrativa se passa em Belém, no Pará), essa premiação evidencia que – no mundo contemporâneo – a publicidade costuma ocultar tudo o que não controla. Ou seja, alguns eventos (independente da relevância) desaparecem no meio da avalanche de superficialidades. Provavelmente, estamos diante de um desses casos.

Os Éguas, publicado originalmente em 1998, mistura, em doses assimétricas, drogas, sexo e violência. Escrito sob o signo do realismo visceral e abusando da linguagem coloquial, inicia com um assassinato e termina no mesmo tom.  Mas não é – de acordo com as formulas prontas da teoria da literatura – exatamente uma narrativa policial. No máximo, um romance de costumes.  Péssimos costumes, como pode comprovar o leitor. Ao investigar a morte do cabeleireiro Johnny Lee, pseudônimo de Percival Anthony Simms, o delegado Gilberto (“Gil”) Castro toma contato com algumas das áreas mais sombrias do submundo de Belém. O morto foi um predador sexual – desses que não respeitam nada, nem ninguém. Pela sua cama passaram diversas crianças, além da escória burguesa. Uma coleção de vídeos amadores documenta esses excessos.

Edyr Augusto
Gil Castro está longe de ser um santo. A soma de suas “qualidades” (alcoólatra, incompetente para resolver as questões amorosas básicas, desrespeitoso com as regras institucionais) mostra que é incompetente para evitar os problemas. Quaisquer problemas. Semelhante ao estereótipo imortalizado nos romances de Raymond Chandler e Dashiel Hammett mistura – de maneira instintiva – a violência com a inocência. Ou seja, além de ser incapaz de perceber que a vida está repleta de contradições, poucas vezes consegue elaborar uma imagem nítida dos acontecimentos.

A morte de Johnny Lee não constitui um grande enigma. O cara era viciado em cocaína e morreu de uma overdose de heroína – é o que garante o laudo da perícia técnica. A hipótese de suicídio não pode ser descartada. E agradaria a quase todos. A única peça estranha nesse quebra-cabeça é o delegado Gil Castro, que não passa de um pobre coitado, e que, na falta de coisa melhor para fazer, resolve realizar a investigação com um pouco de seriedade.
 
Belém, Pará
Uma morte violenta atrai outras mortes violentas. A situação se complica. Poucas diferenças separam a alta sociedade da ralé. No entanto, há algo que coloca todos no mesmo patamar: ninguém quer que certos fatos sejam revelados. Comércio de drogas, vícios sexuais, incompetência do serviço público – são muitas as razões para que alguns personagens sejam retirados de cena. Ao final, sobra o cinismo e a corrupção. Qualquer semelhança com fatos reais não é mera coincidência.


TRECHO ESCOLHIDO


Selminha. Menina danada. Idade imprevisível. Naqueles dois meses de convivência já tinha ouvido sua história de quatro ou cinco maneiras, cada uma com detalhes ainda mais incríveis. Será que ela está sofrendo? Nunca deu bola para nada. De Macapá. O pai enriqueceu no negócio do manganês. A mãe se recusou a morar no mato. Ficou em Macapá, com os filhos. Selma e Dorival. Selma já era Selminha. Dorival, o oposto, trabalha em um Banco, pacífico, solteirão, mora com os pais. Selminha era Selminha. Rápido a sociedade macapaense já sabia dela. E estava farta. Ela também. Macapá era muito pouco. O pai dava surras, quando sabia. A mãe, constantemente.

Decidiram mandá-la para Belém. Para estudar. Fazer o vestibular. Selminha, em apartamento montado, sozinha em Belém. Não fez vestibular, mas conseguiu um namorado, filho de família tradicional. Em Macapá, um urro de alegria. Da mãe, principalmente. Quando ela vinha a Belém, Selma fazia o papel perfeito de filha bem-comportada, namorando para casar. Saíam para passear. Jantar no Roxy, no Lá em Casa, no Casablanca. E dormir cedo. Bola, a empregada que veio para tomar conta, não tinha coragem de contar. E também ainda não sabia se valia a pena. Todos torciam por Selma. A mãe ia embora crente que seu problema estava resolvido. E muito bem resolvido.

A mãe saía por uma porta e Adalberto entrava pela outra. E quem era Adalberto? O sobrenome era Matotti e a família já tinha dado até senadores. Hummm. Mas Adalberto era a ovelha negra. Não queria nada. Não estudou. Não trabalhava. É como esses sanguessugas que vão chegando, chegando e, quando a gente se dá conta, não consegue mais expulsá-los. Desses que não tem casa, não tem eira nem beira, e vão topando tudo. No primeiro dia já vai buscar o pão, leva crianças no colégio, esquenta o jantar, dorme em qualquer canto. Quando se quer expulsar, tarde demais.

Foi ele que apresentou a cocaína a Selma. Tinha uma turma que se reunia quase diariamente em uma casa no Reduto. E rolava de tudo. Selma mergulhou. Com Adalberto. Viviam da mesada de Selma. Iam levando. 

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