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terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

MARACANAZO

O futuro da equipe espanhola, na Copa do Mundo de futebol, em 2014, foi determinado na partida contra os chilenos. Depois de ter perdido para Holanda (5 x 1), Espanha precisava de um bom resultado contra a ex-colônia. Os gols de Vargas e Aránguiz transformaram o Maracanã no cemitério da seleção campeã de 2010. Só restou engolir o orgulho, abaixar a cabeça e voltar para casa (a vitória contra a Austrália – 3 x 0 – não teve a mínima importância). Ficar em terceiro, em um grupo de quatro equipes, com apenas três pontos, caracterizou um dos momentos mais vergonhosos da história futebolística de Espanha. 

Nesse cenário improvável para desenvolver uma narrativa de desencontro amoroso, Arthur Dapieve promoveu a complicada intersecção entre literatura e futebol. A história de Victor e Violeta (evocando as figuras míticas de Victor Jara e Violeta Parra) constitui o pano de fundo para dissecar a tempestade que cada ser humano carrega dentro de si. Mas, não é somente isso. Há outros ingredientes. O passado político dos dois países – e, consequentemente, dos dois personagens – revela que as diversas camadas de violência não podem ser superadas pelo resultado de uma partida de futebol. O breve momento de glória em que aquele que foi oprimido supera o opressor constitui uma insignificante vitória em uma guerra perdida. Ganhar uma partida de futebol não apaga a História, não reduz a violência dos colonizadores, não recupera o que foi roubado, não elimina milhares de mortes.

Arthur Dapieve
No dia 18 de junho de 2014, Victor está sentado em uma cadeira do Maracanã, esperando o inicio da partida contra o Chile. Na companhia de Guillermo e Juan Pablo, ele ainda tem esperanças de que a seleção de Espanha se recupere no campeonato. Em dado momento, os acontecimentos em campo perdem a importância quando a câmera do telão do estádio focaliza o local onde eles estão. Ao lado dos espanhóis estão três garotas, duas brasileiras e uma chilena. A última, tentando fugir da câmera, beija Victor. Esse é o estopim que deflagra uma série de eventos pouco usuais e que somente terminam na manhã seguinte, quando o homem e a mulher se separam – para nunca mais se encontrarem.

Essa é uma síntese do enredo de Maracanazo, o mais extenso dos cinco contos que compõem o livro homônimo. As outras narrativas se desenvolvem em ritmos e temas bastante diferentes. Tempo Ruim descreve uma situação inusitada, tendo como protagonistas dois surfistas. Fragmento da Paisagem, através do relato histórico, se concentra em um concerto em Viena, Áustria, antes da Segunda Guerra Mundial. Enquanto as pessoas ouvem a música de Mahler, o mundo se transforma – e jamais será como antes. Inverno, 1968, que havia sido publicado anteriormente na coletânea Contos para Ler Ouvindo Música (Org. Miguel Sanches Neto, 2005), trata de um ensaio da banda Pink Floyd, e focaliza um dos episódios mais estranhos da história do rock. Bloqueio, por sua vez, narra as dificuldades de um cadeirante nas ruas do Rio de Janeiro.

Sergio Busquets, depois da derrota para o Chile
O fio umbilical que une os cinco contos de Maracanazo e Outras Histórias transcende o nome do autor, expresso na capa do livro. Embora o futebol e a música agrupem parte do livro, o que importa está em outro diapasão. Em cada uma das narrativas, escritas em tempos cronológicos distintos, a mistura de masculinidade e violência gera vários tipos de traumas e cicatrizes. Independente do discurso edulcorado dos livros de autoajuda, nenhum indivíduo consegue escapar incólume na contemporaneidade. Não há remédios ou panaceias capazes de diminuir a dor constante.


TRECHO ESCOLHIDO


(...) Sinto fome, fome demais para caminhar uma distância que já não lembro qual é. Entro numa lanchonete. Como um sanduíche de queijo quente feito num pão de forma. Bebo um suco de laranja. Há outras pessoas falando espanhol no balcão, mas pelo sotaque metálico são argentinos. Evito qualquer confraternização idiomática. Eles também olham de lado para a minha camiseta. Cornos.

Em frente à loja de sucos há uma banca de jornal, com exemplares dos diários locais pendurados do lado de fora e cobertos por um plástico transparente que os protege da chuva fina. Eu me aproximo, ainda com o suco e o sanduíche na mão. Num dos jornais, sob a foto de um grupo de chilenos presos pela invasão à sala de imprensa do Maracanã, está um manchete em português que não tenho dificuldades em decifrar: “Copa acaba mais cedo para a Espanha e 88 chilenos”. Abaixo da manchete, há outra foto, de Busquets ajoelhado, com as mãos no rosto, e a bola lhe ocultando a cabeça. Catalão de merda. Belo retrato de uma derrota. Ao lado da foto, há um título discreto: “O rei também sai de cena”. Deus, que manhã. Dou a última mordida no sanduíche. Passa um negro brasileiro sorridente, empurrando uma bicicleta. Ele me olha e grita:

– Chile!

Com a boca cheia, não consigo manda-lo se foder, e ele se afasta com um sorriso largo no rosto. Que filho da puta! Entro novamente na lanchonete em busca de uma lata de lixo para descartar o guardanapo e o copo de papel. Só então eu me vejo no espelho atrás do balcão. Não estou usando minha camiseta da Espanha. Visto a camiseta chilena do irmão da menina que dizia se chamar Violeta. Na pressa de fugir de nossa vergonha, trocamos camisetas, como fazem jogadores ao final de uma partida. 

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