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Em momentos conturbados, a literatura
possui valor de documento. Ao retratar Cuba e, especificamente, Havana, entre
os anos de 1957 e 1959, Guillermo Cabrera Infante, em Corpos Divinos, seu
último romance – literalmente –, traça um painel do final do governo Fulgêncio
Batista e da ascensão dos revolucionários de Sierra Maestra. Em paralelo, recupera
– em cenas muito engraçadas –, suas obsessões mais significativas (as mulheres, o
jazz, os filmes dos anos 50).
Corpos Divinos não tem aquele tom
cortante de Três Tristes Tigres ou Havana para um Infante Defunto, mil
trocadilhos ecoando a todo instante, como se a prosa fosse uma brincadeira em
que as letras trocam de lugar dentro das palavras e as palavras dançam dentro
das frases. Significados que não deveriam estar lá (mas que estão) surgem diante
dos olhos atônitos do leitor. O que se lamenta é que poderiam estar presentes em
maior quantidade. Como os originais do romance ainda estavam sendo revisados
quando Cabrera Infante faleceu, há a possibilidade de que ele, um
perfeccionista, talvez suprimisse alguns trechos ou incluísse outros. É fato
conhecido que costumava trabalhar com diversas versões de seus textos,
produzindo alterações significativas nos manuscritos antes de entregá-los para
a editora.
Guillermo Cabrera Infante (1929-2005) |
(...) nestas memórias em que desejo celebrar
todas as mulheres que passaram por minha vida naquele época (...), diz, em
algum momento, o protagonista-narrador inominado de Corpos Divinos. Mas não
são somente as mulheres que “passaram” pela vida, quer dizer, pelas páginas do
romance. Todos os personagens da narrativa (celebridades, subcelebridades,
anônimos) aparecem em cena se deslocando de um lugar para outro. Há um constante
ir e vir pelas ruas, praias, salas de aulas, pensões, hotéis, cinemas, teatros,
boates, estúdios de fotografias (principalmente no de Alberto Korda). Havana é
uma festa – inclusive por que conta com a presença de Ernest Hemingway, que
aparece várias vezes no texto, sempre com um copo na mão (vodca, daiquiri,
mojito), e que, em momento estrela do espetáculo, ocupa várias páginas do
livro, durante a gravação de uma das cenas de uma das adaptações de O Velho e o Mar para o cinema. Enfim, em Corpos Divinos, ninguém consegue ficar parado. Nem
mesmo o narrador, que oscila entre a subversão política e as dezenas de
mulheres que cobiça, corteja, seduz, leva para a cama. Desafortunadamente, nessas
duas atividades amorosas, alguns finais não podem ser considerados como
felizes. Não se pode ganhar sempre, diria algum cínico com pretensões
filosóficas.
Nas primeiras 400 páginas (o livro tem
619), o romance se assemelha a um esboço canhestro de crítica social, a
vida privada cubana sendo desvelada pelas mãos de um escritor talentoso, mas
que parece estar se repetindo. A sensação de déjà vu é constante –
principalmente para o leitor que já transitou por outros textos de Cabrera
Infante. Nas histórias ilustradas de um grupo de amigos (Franqui, Adriano, René,
Silvio, Branly, Alberto, Jesse, e outros menos cotados), o sexo é o denominador
comum. O diferencial surge quando as questões políticas tomam conta da
narrativa. O ritmo lento, quase sonolento, é substituído pela urgência
descritiva. O quadro dramático adquire cor, intensidade e dinamismo –
principalmente nos episódios em que os personagens se reúnem para conspirar. É
um tempo em que as pessoas precisam ter discrição política, para não serem
arrastadas pelas armadilhas que estão espalhadas em cada esquina da capital
cubana. É um tempo em que as amizades são colocadas à prova, o amigo de
infância transformado em governista ou em preso político.
Camilo Cienfuegos (esq) e Fidel Castro (centro) |
Há um constante desfilar de personagens
históricos pela narrativa (Fidel Castro, Ernesto “Che” Guevara, Camilo
Cienfuegos). São os novos heróis da História. O protagonista-narrador, figura
secundária nesse cenário, apenas observa e relata (para o leitor) o que ocorre nesses
primeiros dias de confusão, de disputa pelo poder. Apesar da economia de
detalhes sórdidos, fica claro que muitos equívocos foram cometidos. Não há
revolução sem sangue.
Nas últimas páginas, a melancolia
prevalece. Os sonhos de um país democrático se esfumaçam. A liberdade se
transforma em uma figura de retórica. E o ditador deposto é substituído por um
novo déspota. Não há salvação no reino político.
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