Todos os fãs da literatura são voyeurs.
Mais do que apenas escolher seus livros favoritos – na impossibilidade de
escrevê-los! –, eles querem saber detalhes da vida intima dos escritores.
Fulano passou fome? Excelente! Beltrano escrevia dez páginas por dia? Incrível!
Sicrano tinha problemas de caráter? Crápula! Quanto mais bizarras forem as
revelações, melhor. Principalmente aquelas que descrevem algum desvio de
caráter sexual. É para isso que servem as biografias: satisfazer a curiosidade
mórbida do leitor que não se contenta com o conteúdo dos livros. Essa extensão (ficcional
ou real?) equivale ao olhar pelo buraco da fechadura e ver o que o texto
não confessa. O uso da “confissão”, nesse caso, parece apropriado, visto que
muitos escritores costumam afirmar que vida e obra são compartimentos
distintos, que nunca se misturam. Não é bem assim. O poeta é um fingidor, finge
tão completamente e etc. Enfim, não é necessário recitar o poema todo para que
se perceba que alguém sempre está mentindo e, mais importante, mentindo mal. Ou
seja, a tese de que a ficção de um escritor se mostra mais poderosa do que a vida do escritor esbarra
na afirmação de Harry Johnson, protagonista de A Última Palavra, de Hanif
Kureishi, A vida e a escrita formam um livro contínuo. É assim com todos os
escritores. Pode ser, mas em alguns casos, a vida privada é mais fascinante do que a vida ficcional.
Hanif Kureishi |
No romance A Última Palavra, a vida
pessoal de Mamoon Azam é invadida. O editor Rob Deveraux contrata Harry Johnson
para escrever a biografia do célebre escritor inglês (de origem indiana). A
tarefa se mostra muito mais difícil do que parecia em um primeiro instante.
Descobrir algo que alguém – propositalmente – deseja esconder constitui uma das situações mais complicadas do universo humano. Todos os envolvidos precisam estar preparados para as mudanças que se seguem – embora ninguém tenha capacidade (física, emocional) para enfrentar esse tipo de tempestade. Espelho ligeiramente embaçado da realidade, a ficção está repleta de surpresas.
Descobrir algo que alguém – propositalmente – deseja esconder constitui uma das situações mais complicadas do universo humano. Todos os envolvidos precisam estar preparados para as mudanças que se seguem – embora ninguém tenha capacidade (física, emocional) para enfrentar esse tipo de tempestade. Espelho ligeiramente embaçado da realidade, a ficção está repleta de surpresas.
Hanif Kureishi e Stephen Frears, parceria que rendeu excelentes filmes como My Beautiful Laudrette (1985) e Sammy and Rosie Get Laid (1987). |
A maioria dos bons livros não é,
afinal, sobre nossas fraquezas sexuais?, pergunta Harry, enquanto recebe boas
bengaladas pelo corpo, em um dos momentos mais hilários do livro, o biografado
furioso descontando no biógrafo medíocre as suas frustrações mais elementares.
Mamoon, cansado pelo esforço, resume a cena em poucas palavras: Sua obra é
feita de inveja e você não passa de um semifracasso de terceira categoria, um
parasita que consegue sobreviver graças a um encanto de meretriz e a uma boa
aparência que já está definhando. Por acaso você já viu um biógrafo capaz de
escrever tão bem quanto seu biografado?
O passado é um rio e não uma estátua,
diz o pai de Harry, alertando para as armadilhas que acompanham aqueles que
investigam a História humana. Quem quer trabalhar com esse tipo de pesquisa (ou
em áreas correlatas) precisa ver os fatos como um fluxo caudaloso, em constante
deslocamento, e não como um monte de elementos estanques. Somente assim se
conseguirá obter um esboço pálido dos acontecimentos – que devem ser reconstruídos
literariamente. Para Harry, As palavras eram a ponte para a realidade; sem
elas só existia o caos. Palavras ruins podiam nos envenenar e arruinar nossa
vida, disse Mamoon um dia; e as palavras certas podiam recolocar a realidade em
foco. A loucura de escrever era o antídoto para a loucura verdadeira.
O final do romance é surpreendente, o
efeito especular emergindo das trevas, convocando forças que ainda não tinham
entrado em jogo. O narrador de A Última Palavra, embriagado por alcançar algum ponto relevante na sua tarefa, declara, de
maneira absolutamente simples, O romancista é qualquer coisa – trapaceiro,
vigarista, impostor: como quiser. Mas, acima de tudo, é um sedutor.
PS) Quando A Última Palavra foi
lançado na Inglaterra, em 2014, muitos críticos aventaram a possibilidade de se
tratar de um “roman à clef” sobre a vida de Vidiadhar Surajprasad Naipaul (ganhador
do Premio Nobel de Literatura, em 2001). Desmentidos foram emitidos. Mas, para o
bem ou para o mal, a questão permanece.
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