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terça-feira, 17 de maio de 2016

CARTA ABERTA PARA NORMA DE SOUZA LOPES

Ilustre e ilustradíssima:

Tentei escrever uma resenha sobre Borda, teu livro de poemas. Fracassei. Ou melhor, esbarrei nas armadilhas que estão espalhadas por esse território perigoso que chamam de linguagem. Em um esboço, o tom acadêmico foi excessivo. Ou seja, faltou sentimento. Em outro, mais coloquial, sobraram adjetivos. Nesses dois momentos não consegui elaborar algo apropriado. Então, perdoe-me por escolher um terceiro caminho. Quero falar de teu livro nessa tentativa de carta – que é uma forma de ir construindo o pensamento diante da folha em branco, a caneta (ou o computador) fazendo uma ponte entre a reflexão e a ação.

Até alguns meses atrás, éramos (você e eu, eu e você) desconhecidos. Creio que foi um “post” da Adriane Garcia, no Facebook, que chamou a minha atenção para a tua poesia. Não consegui resistir àquela imagem lírica. Compartilhei. Com prazer. Em seguida, passei a acompanhar tua página. E gostei tanto que ampliei o contato: solicitei (mediante pagamento) um exemplar de Borda.

O livro está aqui, ao meu lado. Li várias vezes. Todos os poemas. De alguns gostei mais. De todos senti inveja. Queria ter esse domínio da gramática poética. Queria poder misturar suavidade e violência em doses desiguais. Enfim, queria saber expressar a espantosa harmonia que encontro em teus poemas.

Outra coisa de que gostei é que não há nada de hermético no que você escreve. Todos os teus versos são avessos às complicações. Com um vocabulário objetivo, você vai construindo um espaço físico particular, síntese gráfica de tua casa, onde o leitor é convidado para se sentar à mesa e desfrutar do banquete oferecido nas páginas de Borda. Diante de todos esses agrados, é inescapável (palavra que você jamais usaria) ignorar o poder encantatório dos versos que compõem os teus poemas.

São textos onde a condição feminina está exposta sem vergonhas, sem amarras. São declarações objetivas sobre de que lado da fenda estar. Ao mesmo tempo, há um expresso repúdio para a imagem da “bela, recatada e do lar”. No teu mundo, estereótipos não resultam em versos de qualidade. Você prefere um cisco / no olho da história. Por isso mesmo é que alguns poemas anunciam uma mulher que gosta de gozar e que anda cansada de ser mater dolorosa. Diante das graves questões que assolam o mundo, você está ciente que não é possível tolerar o inominável: de raiva / desfiro a mordida. Um pouco depois, o poema se completa com o ritual de execução: noutra cena / liberto a fúria / e corto-lhe a aorta. Essas mortes simbólicas não significam uma guerra contra a masculinidade. Apenas relatam a intolerância à violência – que, infelizmente, é uma forma de inaugurar décadas de rejeição.

Norma, o leitor se surpreende com a delicadeza com que você abraça os pequenos elementos do dia a dia. Os sentimentos, as lembranças, os rumores intangíveis. O leitor retém na mente a história do menino sorrindo dentro da fotografia, as revelações sobre a morte (é para isso que servem os cachorros) e os movimentos de um gato, em um dia de sol. Leio esses poemas e imagino você dizendo para os leitores (teus novos alunos) que vida está ao alcance de quem possui um mínimo de sensibilidade e leveza.

O que estou tentando explicar, e sem sucesso, Norma, é que Borda instala um bordado das palavras. Mas, com a ressalva de que você não é Penélope, ou melhor, não é uma Penélope qualquer, tua epopeia é outra, através da poesia fica expressa a recusa de passar vinte anos esperando por quem foi lutar outras guerras, destruir outras cidades. Você é Norma, a lei, o poema, o universo em expansão. Por isso, a escolha do leitor é simples. No compor e decompor da aventura lúdica, brincadeirinha do destino, desatino para quem não está acostumado a perceber que o mundo cabe inteirinho dentro de alguns versos, a vida (abismo e vertigem) pulsa com força. Tua poesia a isso reforça. Beleza em estado puro. 

Norma, vou encerrar por aqui. Poderia continuar essa missiva por várias páginas. Corro o risco de me tornar redundante. Ou ininteligível. Então, quero desejar vida longa para você e para Borda.

É isso.
Beijos,



QUATRO POEMAS ESCOLHIDOS


vazante


depois do deserto

e da solidão

eu falo a palavra água

e ela me inunda


uma enchente

um tsunami

um caldo

de corpo e alma

lavada


flutuo até os estrados

do telhado devastado

e espero a água baixar


quando o pássaro voltar

eu mesma vou ser

minha mãe

serei mãe


então

a água que também

escorre dos meus olhos

irá secar



nunca amei longe de casa


duas ruas

nove casas

e dez galáxias

entre eu

e o menino

que eu amava



mamãe trazia lixo na bolsa


às quatro e meia ela chegava

era gari

se a casa não estivesse limpa

apanhávamos


trazia lixo na bolsa

comida revista livro

se achasse cigarros fumava

se achasse terço rezava


mamãe foi a primeira ambientalista que conheci



inflamação


de dez em dez anos queimo cartas

mas há pontos costurados e visíveis

cicatrizes de amor nunca somem


ah, esses amores perdidos

capazes de lavar e pentear-me os cabelos

como quem cuida de um ancião


nunca tocam minha pele febril

tantos cuidados, assepsia

e eu à espera de arranhões

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