A arqueologia é um dos elementos mais
significativos da crítica literária. Ou seja, em alguns momentos – independente
do que possa motivar esse tipo de ação – faz-se necessário voltar o olhar vagarosamente
para o passado. Nada do que imaginamos ser atual foi ignorado pelo passado. Literatura
é documento. Como consequência dessa busca pelo conhecimento, urge exumar da
estante os alfarrábios que estão imersos na poeira do tempo. Um exemplo é o
quase desconhecido romance A Carteira de Meu Tio, de Joaquim Manuel de Macedo
(1820-1882), escrito nos anos 50 do século XIX.
Estruturado nas digressões filosóficas
de um arrivista (isto é, de um indivíduo que quer vencer na vida sem fazer
esforços, sem ter que se submeter aos impedimentos morais ou éticos), A
Carteira de Meu Tio permite interessante confronto com algumas questões
contemporâneas – principalmente no que se refere ao mundo político, onde o contraste
entre o sucesso (econômico e social) e a marginalidade (econômica e social)
adquire visibilidade.
Aos vinte anos de minha idade parti para a Europa, a fim de completar os meus estudos (à custa de meu tio, já se sabe). Estudei com efeito muito em Paris, onde acentei a fateixa: oh! Sim, estudei muito! Passeei pelos boulevards; fui aos teatros, apaixonei-me loucamente por vinte grisettes; tive dez ou doze primeiros amores; por me faltar tempo não pude ver uma só biblioteca; por me acordar sempre tarde nunca frequentei aula alguma; e no fim de cinco anos dei um pulo à Alemanha, arranjei uma carta de doutor (palavra de honra que ainda não tive a curiosidade de examinar em que espécie de ciência), voltei para este nosso Brasil, apresentando-me a meu tio logo no primeiro instante com as mais irrecusáveis provas do meu aproveitamento, isto é, vestido no último rigor da moda, falando uma algaravia, que é metade francês e metade português, e ostentando sobretudo por cima de meu lábio superior um bigodinho insidioso, por baixo de meu lábio inferior uma pera fascinadora, e para complemento desses encantos, um charuto aromático preso de contínuo entre os lábios, perfumando a pera e o bigode.
Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882) |
O “sobrinho de meu tio” (que é como o
narrador denomina a si mesmo), homem vaidoso e superficial, imaginava que manteria
a vida ociosa. Diante do tio, incapaz de confessar a falta de qualificação,
declara ter a vontade de alcançar a estabilidade profissional como político. O
tio, sem muito acreditar nesse disparate, o despacha para o interior do país,
dizendo que era necessário estudar o que convém ao país, (...) o que se passa
nele, e (...) os costumes de nosso povo. Evidentemente, essa pesquisa de campo
não agradou ao rapaz, que queria continuar na Corte, gastando o dinheiro do tio.
Montado em um matungo “ruço-queimado” e
acompanhado pela Constituição do Império (apelidada pelo tio de “a falecida”),
o sobrinho mergulha nas profundezas do sertão brasileiro. Aos moldes de Michel
de Montaigne, começa a refletir sobre a precariedade de sua situação e como
deverá agir quando essa viagem horrível terminar. Ao contrário do filósofo
francês, ele não tem simpatias pelo ser humano. Sem fazer esforço para esconder
sua verdadeira substância, ele se mostra cínico, insensível e preconceituoso. Suas
divagações são amorais, egoístas e problemáticas.
Em determinado momento, surge na
narrativa uma figura que em tudo é oposta ao sobrinho: o compadre Paciência. Viajando
juntos, eles mostram, de forma explícita, o contraponto. Enquanto o sobrinho
manifesta descaso com os pobres e exalta os que estão no poder, Paciência se
revolta com a apatia das autoridades com aqueles que precisam superar as
dificuldades da vida.
A situação política do Brasil (no
momento histórico do romance?) está retratada no episódio em que os dois
viajantes encontram uma família desabrigada, depois que a casa em que eles moravam
foi incendiada por um grupo político rival. Compadre Paciência conversa com o
chefe da família:
– Miséria e indignidade! E não há por aqui perto alguma outra autoridade pública, a quem se possa recorrer?
– Oh! Pois não! Excelente conselho teima ainda o senhor a dar-me: mora ali adiante o Inspetor de Quarteirão; mas se eu lá for queixar-me deste atentado, o homem, que é dos de papo amarelo, ou me despedirá com duas gargalhadas e uma descompostura, ou me mandará recrutar como vadio; ou enfim me fará morar alguns dias na cadeia, enquanto passa a eleição; porque a chapa, que eu rejeitei, chama-se chapa governista, e o proprietário desta terra além de ser o delegado de polícia é o chefe do partido, e portanto tem o poder de fazer o que lhe der na cabeça. Ainda bem que ele se contentou somente em incendiar-me a casa: foi um exemplo, simplesmente um exemplo, para que não grassasse a desobediência.
– Mas o senhor tem a seu favor o direito, que lhe confere a lei.
– E tenho contra mim a pobreza, que é uma espécie de eterna suspensão de garantias meu caro.
– Então não acha recurso?
– Para mim agora já não há nenhum; para os outros pobres, se não quiserem que lhes queimem as casas, há o recurso de votar, como lhes ordenarem os ricos de quem dependem.
Diante desse tipo de situação, como age
o sobrinho? Com absoluto descaso pela virtude ou por qualquer elemento que
possa constituir alguma reflexão crítica. Não entende (ou não quer entender)
que os pobres possuem direitos. Defensor do uso da força como arma de controle
social, utiliza-se de uma retórica que não está muito longe de alguns discursos recentes:
E quanto à chamada prepotência do rico sobre o pobre, entendo que ela é muito natural. Todo homem manda e quer ser obedecido; mas na escala social uns mandam mais do que outros, e mesmo assim todos mandam: até o pretinho escravo manda ao gato e ao cachorro que tem na sua senzala; depois do escravo vem o pobre, que está dois furos acima do cachorro e do gato e um acima do escravo, que por isso lhe obedece: ora, segundo a ordem natural o pobre devia obedecer também a alguém; e portanto cumpre que obedeça ao rico, assim como o cachorro e o gato obedecem ao pretinho escravo, e este ao pobre. Isto é lógica de ferro! Não há dúvida nenhuma, eu nasci para ser jornalista de um ministério que pague bem!
E algumas páginas depois, o sobrinho faz
uma confissão significativa, dessas que merecem um olhar mais detalhado, pois
revela o quanto há de preconceito em suas ideias:
O indigno caixeiro ou o canalha artista, que conseguiu agradar à filha ou sobrinha de um homem rico e que apenas de longe a namora, ou que se atreve a mandar-lhe uma cartinha de amores, quando lhe descobrem a trapalhada amorosa é logo recrutado, ou caem-lhe com o Ano do Nascimento em cima e mandam-no para a cadeia por qualquer crime policial que se arranja; mas o velho milionário libidinoso, ou o desregrado filho do rico, salta pela janela da casinha do pobre, mancha-lhe o leito nupcial, rouba-lhe, pelo prazer brutal de um instante, a única riqueza da filha, lança a desordem e a infâmia no seio da família, e depois conta como uma vitória o crime, e aqueles que o deviam punir dizem sorrindo-se, quando ele passa: “que maganão de bom gosto!”, e a coisa fica nisso, e deve na verdade assim ficar; porque se a riqueza não desse direito a tão inocentes gozos, então os ricos e os pobres, a canalha e os fidalgos seriam iguais, o que fora um verdadeiro absurdo social.
Essa falta de respeito com aqueles que
não herdaram ou roubaram fortunas também se reflete na ordem constitucional e,
outra vez, remete aos elementos políticos que norteiam a atualidade:
A Constituição do Império! Eu não sei
como há insensatos que ainda acreditam nela e lhe rendam cultos! Não posso de
modo algum compreender a espécie de adoração, que lhe tributa meu respeitável
tio: pela minha parte declaro que detesto a Constituição por três fortíssimas
razões: primo: porque assim me
assemelho a muitos dos grandes homens de minha terra; secundo: porque a Constituição do Império é um poema, e eu abomino
a poesia; tertio: porque ou ela há de
ser sempre letra morta, como até agora, ou tem que ser algum dia letra viva. Se
há de ser letra morta é melhor enterrá-la já, que é obra de caridade dar
sepultura aos mortos, e se tem que ser letra viva algum dia, é muito
conveniente acabar com ela quanto antes, para que depois não nos venha dar água
pela barba.
E, nesse ritmo, segue por diversas
páginas, sem se preocupar com qualquer outro projeto que não seja o de levar
vantagem. Mesmo nos momentos em que entra em contradição, o discurso proferido
pelo sobrinho objetiva unicamente o desprezo por qualquer questão que contribua
para a existência de atividades democráticas. Plutocrata por definição, o
sobrinho não perde uma oportunidade para desqualificar “a falecida”:
A Constituição deveria ser uma virgem formosa, de quem os ministros e magistrados da nação fossem amantes apaixonados; mas é pelo contrário como uma velha pobre e coberta de cicatrizes, de quem eles riem e zombam constantemente.
Em síntese: A Carteira de Meu Pai é uma
narrativa verborrágica, com trechos de difícil compreensão para o leitor do
século XXI. O uso abusivo da enumeração e da redundância transforma o texto em
um discurso político anacrônico – embora, na prática, ainda tenha muitos
adeptos contemporâneos, pois a cadeia é destinada para os ladrões e ladrão é
somente quem furta pouco. Por outro lado, há quem compreenda o romance como
uma crítica social, onde o relato dos excessos apresenta aspecto de sátira e de
escárnio com a sociedade brasileira do Primeiro Reinado. E que, por analogia,
estão presentes na atual história da República.
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