No universo esportivo, o xadrez é o
campeão na produção de malucos. De cada dez jogadores, no mínimo três, talvez
quatro, possuem algum tipo de distúrbio mental. E raramente são “probleminhas”,
desses que se corrige com meia dúzia de sessões de terapia no psicólogo. Nem
mesmo o tênis, famosíssimo por produzir “figurinhas carimbadas” no mundo das
excentricidades, consegue rivalizar com o jogo de tabuleiro. De acordo com o campeão
mundial (1985-2000) Garry Kasparov (nascido Garry Kimovich Weinstein), Xadrez é tortura
mental.
Por outro lado, George Steiner, em um
ensaio clássico, Uma Morte de Reis, afirma, com todas as letras, que somente teve
conhecimento de três momentos intelectuais em que a genialidade se manifesta na
juventude: a música, a matemática e o xadrez. Descontando certas
particularidades, as três formas “artísticas” caminham na mesma direção. E isso
sinaliza para que um raio de esperança se projete no manicômio geral. Na
contramão, muitos jogadores de xadrez conseguiram (mais ou menos) romper com o
estereótipo que liga o jogo com as insanidades. Por exemplo, o inglês John Nunn
tornou-se doutor em matemática (ele é responsável por importantes contribuições
teóricas), o alemão Robert Hūbner é doutor em arqueologia, o russo Mark Evgenievich Taimanov era concertista internacional de piano e o letão Mikhail Nekhemievich Tahl
ostentava o título de mestre em literatura russa. As contribuições do
engenheiro russo Mikhail Moiseyevich Botvinnik nas áreas de robótica e inteligência
artificial (ainda hoje) não podem ser ignoradas. Então, descontadas as exceções, a questão,
obviamente, está em canalizar as qualidades do jogo (cognição intelectual,
principalmente em relação ao cálculo e à espacialidade) com o mínimo de dano
cerebral. Nem sempre isso é possível.
Reykjavik, Islândia, 1972 |
Quem tiver curiosidade para conhecer uma
versão da vida do campeão mundial de xadrez (1972-1975) Robert James Fischer
deve assistir O Dono do Jogo (Pawn Sacrifice. Dir. Edward Zwick, 2015). E,
obviamente, procurar, logo depois, pela bibliografia adequada, pois o filme
apresenta alguns desvios factuais. Por questões relacionadas com roteiro, há um
nítido enfoque na patologia paranoide que alimentou parte da genialidade do
jogador estadunidense.
Fischer (interpretado por Tobey Maguire)
tinha uma obsessão: tornar-se campeão mundial. Não mediu esforços para que isso se transformasse em
realidade. Em seus delírios persecutórios, criou centenas
de culpados por alguns de seus malogros. Algo similar ao dividir o mundo entre
aqueles que estavam do seu lado e os que estavam contra. Simultaneamente, o
zênite dessa história ocorre durante o ápice da “Guerra Fria”, que foi o conflito ideológico e econômico entre a União das Republicas Socialistas Soviéticas e
Estados Unidos. Como cada uma das partes puxou a brasa para sua sardinha, incluindo
nesse pacote telefonemas do Henry Kissinger, clamando para que Fischer fosse
defender a “democracia”, o match do século adquiriu uma importância política
que, em outras circunstancias, não passaria de uma série de partidas entre
dois lunáticos.
Bobby Fischer, em 1957 (14 anos). |
O embate ocorreu entre os dias 11 de
junho e 03 de setembro de 1972, em Reykjavik, capital da Islândia. O adversário
de Fischer foi o russo Boris Vassielevich Spassky (interpretado por Liev
Schreiber) – e que o filme transformou em uma sombra anódina, quase um robô,
eternamente de óculos escuros e cercado por guarda-costas. O score dos jogos
anteriores entre os dois era assustador: três a zero para o russo (Mar del
Plata, 1960; Santa Mônica, 1966 e Siegen, 1970). E que aumentou no inicio do
“match”: Fischer cometeu um erro crasso na primeira partida e não compareceu na
segunda. Pelas regras vigentes na época, o estadunidense deveria ser
desclassificado por abandonar a competição. Depois de muitas conversações e de
concessões aos pedidos absurdos de Fischer, que reclamava de tudo e de
todos (incluindo várias discussões sobre dinheiro, poltronas, luzes e câmeras de
televisão), as partidas foram reiniciadas. E o que aconteceu em seguida foi uma espécie
de tsunami. Fischer se impôs com grande facilidade. Com exceção da décima-primeira
partida, quando Spassky recuperou um pouco da dignidade, a devastação foi
completa. Os fatos estão sintetizados no resultado final: 12,5 x 8,5 (sete vitórias de Fischer, três de Spassky e onze empates).
William James Lombardy |
No filme, ao redor de Fischer orbitam duas
pessoas: o seu “segundo”, o padre William James Lombardy (interpretado por
Peter Sarsgaard), campeão mundial juvenil de 1957, o único estadunidense que
havia vencido Spassky anteriormente, e o advogado Paul Marshall (interpretado
por Michael Stuhlbarg). Os dois são testemunhas dos diversos surtos psicóticos de
Fischer – que, em outro contexto, provavelmente deveria ser internado em alguma
instituição para pessoas com problemas mentais.
Do ponto de vista enxadrístico, as
partes mais divertidas do filme são as partidas que Fischer e Lombardy jogam
nos intervalos dos torneios. Sejam em ritmo “blitz” ou “às cegas”, retratam um
mundo onde qualquer outro tipo de entretenimento é excluído – aos jogadores só
interessa o jogo! Enfim, como escreveu Ricardo Reis (também conhecido como Fernando Pessoa), Ardiam casas, saqueadas eram / As arcas e as paredes / Violadas, as mulheres
eram postas / Contra os muros caídos, / Trespassadas de lanças, as crianças /
Eram sangue nas ruas.../ Mas onde estavam, perto da cidade, / E longe do seu
ruído, / Os jogadores de xadrez jogavam / o jogo de xadrez. Nesse sentido, o
roteiro de O Dono do Jogo foi construído através de uma forma que insinua que Fischer
perdeu para Spassky, em Santa Mônica, em 1966, porque cometeu uma transgressão:
em lugar de se concentrar na partida, fez sexo pela primeira vez no dia
anterior. Total bobagem. Aliás, alguns biógrafos dizem que Fischer havia
resolvido a questão sexual seis anos antes, em Buenos Aires, talvez o pior
torneio de sua vida (ficou em 14º lugar e das dezenove partidas que jogou, venceu três,
perdeu cinco e empatou onze). Conta a lenda que depois desse desastre passou a
considerar as mulheres como uma distração a ser evitada!
Boris Vassielevich Spassky, em 1948 (onze anos) |
Como curiosidade enxadrística, O Dono
do Jogo é um filme que não pode ser desprezado, embora ignore diversas
questões – como o fato de que tanto Fischer quanto Spassky não tiveram a figura
paterna presente em suas infâncias e que o xadrez foi uma maneira de superar
essa falta. Guardadas as devidas diferenças, eles eram faces da mesma moeda.
Outro aspecto relevante, para quem têm um mínimo de conhecimento da história do
jogo, está em certas anomalias apresentadas pelo filme. Por exemplo, colocar
Fischer reclamando que os russos faziam “jogo de equipe” em 1962, na competição
realizada em Varna, Bulgária, configura uma idiotice. A Olimpíada de Xadrez é um
torneio por equipes!
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