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quarta-feira, 16 de novembro de 2016

A FILHA PERDIDA

O romance A Filha Perdida, da italiana Elena Ferrante, não deve ser considerado como um ensaio sobre a maternidade. Mas poderia ser. Ingredientes não faltam: a rejeição aos filhos, a ambição pessoal em detrimento da vida familiar e, fundamentalmente, a culpa. Também consagra dois temas que ressurgem em paralelo como aguilhões: o medo da solidão e a banalidade do mal.

O enredo linear da narrativa (seguindo o esquema básico: começo, meio e fim, nesta ordem) não apresenta grandes surpresas. Os poucos flash-backs acrescentam um elemento significativo, a rememoração, quando se trata de descrever com exatidão os sentimentos que estão escondidos naquela “hora neutra da madrugada” (segundo célebre definição de Rubem Braga) em que os fantasmas pessoais adquirem solidez e colocam em relevo a sordidez que recheia os pecados.

Leda, 48 anos, professora universitária, decide passar as férias na praia. Vai sozinha. As filhas (Bianca e Marta) moram no Canadá. Com o pai. Nenhuma surpresa. Por um período, três anos, as meninas estiveram afastadas da mãe. Eu fui embora. Abandonei-as quando a maior tinha seis anos e a menor, quatro, explica Leda, sem tremer a voz, sem estar preocupada que esse tipo de declaração possa apavorar quem está ouvindo. Às vezes, precisamos fugir para não morrer

(...) apesar de ter fugido, não fui muito longe, confessa Leda, ao olhar para o passado. O mundo que encontra fora do ambiente doméstico não se mostra domesticado. Ao contrário, a selva costuma devorar todos os que não conseguem se adaptar ao ambiente predatório. O caso afetivo-sexual que teve com um professor se revelou insatisfatório. Muitas de suas expectativas intelectuais não se efetivaram. A frustração se tornou uma constante.

Leda quer convencer – e se convencer – de sua incapacidade de encenar o papel de Mater Dolorosa, aquela que sacrifica as ambições pessoais em favor da prole. Os filhos sempre causam preocupações, confessa, sem discernir se o que a incomoda é o bem-estar dos filhos ou os mal-estares que eles causam nos pais. Não importa. Qualquer definição conceitual se mostra incapaz de explicar aquilo que a corrói internamente.

Na praia, Leda fixa sua atenção em uma jovem mãe e sua filha. A menina, Elena, brinca exaustivamente com uma boneca. Diversos parentes surgem em algum momento e promovem uma festa. Essa alegria destemperada – que lhe é em tudo distante, porque lembra a falta de educação da própria família – aborrece Leda.

Certo dia, Elena desaparece no meio da multidão que frequenta a praia. Inicia-se uma busca frenética pela menina. Todos saem para procurar. Quem a encontra é Leda, que a entrega aos parentes. O ponto crucial desse incidente se resume em uma questão menor: a boneca de Elena também desapareceu. A menina, desesperada, fica doente – apesar das promessas da mãe, Nina, de comprar outra boneca.

A racionalmente desaparece, nessa história, diante de um detalhe mesquinho. Leda escondeu a boneca na bolsa de praia. A princípio, a ideia era devolver no dia seguinte. Não foi o que aconteceu. Mesmo sabendo que Elena estava com febre, ou talvez por isso mesmo, manteve a boneca escondida no apartamento que havia alugado para passar as férias. Sem precisar usar as ferramentas de análise psicanalíticas, o leitor percebe que Leda compensa a sua incapacidade de estabelecer uma relação saudável com o mundo que habita com a companhia do brinquedo.

O que se segue equivale a uma descrição precisa das torturas que acompanham a maldade. Leda, apesar de ter excelente compreensão dos acontecimentos, não se preocupa em desfazer o horror. Prefere macerar a culpa por estar agindo errado, ao mesmo tempo em que vê o sofrimento que causa. Derramei a raiva secreta que nutria por mim mesma, diz, em outro contexto, mas que serviria perfeitamente para caracterizar a situação.

Em paralelo, há outros elementos que interagem no desenvolvimento da narrativa. Um dos mais emblemáticos surge quando Leda descobre que Nina está tendo um caso extraconjugal com Gino, o salva-vidas. Esse fato desencadeia uma nova serie de complicações, inclusive o desfecho. O fio que liga o cotidiano e as relações sociais foi rompido. Sobra pouco. Muito pouco. 

No telefone, falando com as filhas, Leda faz um resumo dos acontecimentos:

Nesse momento tocou o telefone. Vi o nome de Marta, senti uma grande satisfação e atendi. Ela e Bianca, em uníssono, como se tivessem preparado a frase e a recitassem acentuando meu sotaque napolitano, gritaram alegremente no meu ouvido.

– Mamãe, o que você anda fazendo, não liga mais para a gente? Pode pelo menos nos dizer se está viva ou morta?

Murmurei, comovida:

– Estou morta, mas bem.


Evidentemente, essa cena não é uma metáfora “ad hoc”, tanto que, ao voltar para Florença, Leda bate o carro na barra de proteção da estrada. Aos amigos e às filhas explica que dormiu ao volante. Mas eu sabia perfeitamente que esse não fora o verdadeiro motivo. O motivo havia sido um gesto sem sentido, sobre o qual, justamente por ser sem sentido, decidi não contar a ninguém. As coisas mais difíceis de falar são as que nós mesmos não conseguimos entender.



TRECHO ESCOLHIDO


(...) Fiquei muito feliz ao saber, quando estava grávida, que dentro de mim uma vida se formava. Eu queria fazer tudo da melhor maneira. As mulheres da minha família inchavam, dilatavam. A criança estabelecida no ventre delas parecia uma longa doença que as transformava, mesmo depois do parto não voltavam mais a ser as mesmas. Já eu queria uma gravidez vigiada. Eu não era minha avó (sete filhos), não era minha mãe (quatro filhas), não era minhas tias, minhas primas. Eu era diferente e rebelde. Queria carregar minha barriga inchada com prazer, aproveitando os nove meses de espera, espiando, guiando e adaptando meu corpo à gestação, como eu havia feito teimosamente com tudo na minha vida desde o início da adolescência. Eu me imaginava como uma peça fulgurante do mosaico do futuro. Por isso me cuidei, segui rigorosamente as prescrições médicas. Consegui permanecer bonita, elegante, ativa e feliz durante todo o período da gravidez. Eu falava com a criança na barriga, fazia com que ela ouvisse música, lia no original os textos em que eu estava trabalhando, traduzia-os com um esforço inventivo que me enchia de orgulho. O que depois se tornou Bianca já era Bianca para mim desde o início, um ser em seu melhor estado, purificado de fluídos e sangue, humanizado, intelectualizado, sem nada que pudesse evocar a crueldade cega da matéria viva em expansão. Até minhas longas e furiosas dores do parto consegui subjugar, moldando-as como uma prova extrema a ser enfrentada com sólida preparação, contendo o terror e deixando de mim – especialmente de mim mesma – uma lembrança digna.


Fui bem-sucedida. Como fiquei feliz quando Bianca saiu de dentro de mim e veio para os meus braços por alguns segundos, e percebi que ela havia sido o prazer mais intenso da minha vida. (...) Mas depois veio Marta. Foi ela que agrediu meu corpo, obrigando-o a revirar-se sem controle. Ela se manifestou desde o início não como Marta, mas como um pedaço de ferro vivo na barriga. Meu corpo se tornou um licor sanguinolento, e suspenso nele havia um sedimento mole dentro do qual crescia um pólipo furioso, tão distante de qualquer humanidade que me reduziu, ainda que ele se nutrisse e expandisse, a uma matéria pútrida sem vida. (...)


Eu já estava infeliz naquela época, mas não sabia. Parecia que a pequena Bianca, logo após seu lindo nascimento, havia mudado de maneira brusca e roubado traiçoeiramente toda a minha energia, toda a minha força, toda a minha capacidade de fantasia. Parecia que meu marido, ocupado demais com a sua fúria de progredir, sequer percebia que sua filha, depois de nascer, havia se tornado voraz, exigente, desagradável como nunca me parecera dentro da barriga. Descobri aos poucos que eu não tinha força para tornar a segunda experiência tão emocionante quanto a primeira. Minha cabeça afundou para dentro do corpo, parecia que não havia prosa, verso, figura de linguagem, frase musical, sequência de filme ou cor capaz de domesticar a fera sombria que eu carregava no ventre. Aquela foi a verdadeira derrocada para mim: a renúncia a qualquer sublimação da minha gravidez, a desconstrução da mesma lembrança feliz da primeira gestação, do primeiro parto.   

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