O romance A Filha Perdida, da italiana
Elena Ferrante, não deve ser considerado como um ensaio sobre a maternidade.
Mas poderia ser. Ingredientes não faltam: a rejeição aos filhos, a ambição
pessoal em detrimento da vida familiar e, fundamentalmente, a culpa. Também
consagra dois temas que ressurgem em paralelo como aguilhões: o medo da solidão
e a banalidade do mal.
O enredo linear da narrativa (seguindo o
esquema básico: começo, meio e fim, nesta ordem) não apresenta grandes
surpresas. Os poucos flash-backs acrescentam um elemento significativo, a rememoração, quando se trata de descrever com
exatidão os sentimentos que estão escondidos naquela “hora neutra da madrugada”
(segundo célebre definição de Rubem Braga) em que os fantasmas pessoais adquirem
solidez e colocam em relevo a sordidez que recheia os pecados.
Leda, 48 anos, professora universitária,
decide passar as férias na praia. Vai sozinha. As filhas (Bianca e Marta) moram
no Canadá. Com o pai. Nenhuma surpresa. Por um período, três anos, as meninas
estiveram afastadas da mãe. Eu fui embora. Abandonei-as quando a maior tinha
seis anos e a menor, quatro, explica Leda, sem tremer a voz, sem estar
preocupada que esse tipo de declaração possa apavorar quem está ouvindo. Às
vezes, precisamos fugir para não morrer.
(...) apesar de ter fugido, não fui
muito longe, confessa Leda, ao olhar para o passado. O mundo que encontra fora do ambiente
doméstico não se mostra domesticado. Ao contrário, a selva costuma devorar todos os que
não conseguem se adaptar ao ambiente predatório. O caso afetivo-sexual que teve com um
professor se revelou insatisfatório. Muitas de suas expectativas intelectuais não
se efetivaram. A frustração se tornou uma constante.
Leda quer convencer – e se convencer –
de sua incapacidade de encenar o papel de Mater Dolorosa, aquela que
sacrifica as ambições pessoais em favor da prole. Os filhos sempre causam
preocupações, confessa, sem discernir se o que a incomoda é o bem-estar dos
filhos ou os mal-estares que eles causam nos pais. Não importa. Qualquer
definição conceitual se mostra incapaz de explicar aquilo que a corrói
internamente.
Na praia, Leda fixa sua atenção em uma
jovem mãe e sua filha. A menina, Elena, brinca exaustivamente com uma boneca.
Diversos parentes surgem em algum momento e promovem uma festa. Essa alegria
destemperada – que lhe é em tudo distante, porque lembra a falta de educação da
própria família – aborrece Leda.
Certo dia, Elena desaparece no meio da
multidão que frequenta a praia. Inicia-se uma busca frenética pela menina. Todos
saem para procurar. Quem a encontra é Leda, que a entrega aos parentes. O ponto
crucial desse incidente se resume em uma questão menor: a boneca de Elena
também desapareceu. A menina, desesperada, fica doente – apesar das promessas
da mãe, Nina, de comprar outra boneca.
A racionalmente desaparece, nessa
história, diante de um detalhe mesquinho. Leda escondeu a boneca na bolsa de
praia. A princípio, a ideia era devolver no dia seguinte. Não foi o que
aconteceu. Mesmo sabendo que Elena estava com febre, ou talvez por isso mesmo,
manteve a boneca escondida no apartamento que havia alugado para passar as
férias. Sem precisar usar as ferramentas de análise psicanalíticas, o leitor percebe que Leda compensa a sua incapacidade de estabelecer uma relação saudável com
o mundo que habita com a companhia do brinquedo.
O que se segue equivale a uma descrição
precisa das torturas que acompanham a maldade. Leda, apesar de ter excelente
compreensão dos acontecimentos, não se preocupa em desfazer o horror. Prefere
macerar a culpa por estar agindo errado, ao mesmo tempo em que vê o sofrimento
que causa. Derramei a raiva secreta que nutria por mim mesma, diz, em outro
contexto, mas que serviria perfeitamente para caracterizar a situação.
Em paralelo, há outros elementos que
interagem no desenvolvimento da narrativa. Um dos mais emblemáticos surge
quando Leda descobre que Nina está tendo um caso extraconjugal com Gino, o
salva-vidas. Esse fato desencadeia uma nova serie de complicações, inclusive o
desfecho. O fio que liga o cotidiano e as relações sociais foi rompido. Sobra pouco. Muito pouco.
No telefone, falando com as filhas, Leda
faz um resumo dos acontecimentos:
Nesse momento tocou o telefone. Vi o nome de Marta, senti uma grande satisfação e atendi. Ela e Bianca, em uníssono, como se tivessem preparado a frase e a recitassem acentuando meu sotaque napolitano, gritaram alegremente no meu ouvido.
– Mamãe, o que você anda fazendo, não liga mais para a gente? Pode pelo menos nos dizer se está viva ou morta?
Murmurei, comovida:
– Estou morta, mas bem.
Evidentemente, essa cena não é uma metáfora
“ad hoc”, tanto que, ao voltar para Florença, Leda bate o carro na barra de
proteção da estrada. Aos amigos e às filhas explica que dormiu ao volante. Mas
eu sabia perfeitamente que esse não fora o verdadeiro motivo. O motivo havia
sido um gesto sem sentido, sobre o qual, justamente por ser sem sentido, decidi
não contar a ninguém. As coisas mais difíceis de falar são as que nós mesmos
não conseguimos entender.
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