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segunda-feira, 21 de novembro de 2016

O MARECHAL DE COSTAS


Toda biografia é como adivinhar pelas costas o rosto de alguém. Damos à pessoa um traço possível. Quando ela se vira, pode ser outra. Pode ser, aliás, o contrário, como uma estátua que estranha o rosto de seu modelo vivo.
O Marechal de Costas, de José Luiz Passos


A literatura brasileira contemporânea estava desconectada com a História. Estava. Quer dizer, houve tempo que esteve mais. Muito mais. Agora, sem saber distinguir se isso é bom ou ruim, está um pouco menos. Mas, nesse caso, apesar do trocadilho ruim, menos não é mais. Literatura é documento, é testemunho, é retrato de época. Obviamente, uma parcela dos escritores em atividade procura – com todas as forças e palavras – negar esse fato. Eles preferem preencher páginas e páginas com variações em torno dos próprios umbigos. Sai cada sujeira...

Ao estabelecer uma ligação entre alguns episódios da vida do alagoano Floriano Viana Peixoto (1839-1895), segundo Presidente do Brasil, e uma cozinheira que participa de um comício em favor de Dilma Rousseff, a narrativa consegue – através da comparação histórica – demonstrar que a gênese política da República está alicerçada em algum tipo de golpe de Estado. Suposta parente distante do Marechal, o que a torna uma espécie de curiosidade na casa em que trabalha, cabe à mulher narrar os fatos contemporâneos. Em compensação, os eventos ocorridos no Império e nos dois primeiros governos da República estão descritos por um narrador impessoal, em terceira pessoa, que constantemente recorre a fontes bibliográficas. Desta forma, como compete às linhas paralelas (que nunca se encontram no infinito), a espinha dorsal da narrativa (que parece ser muito tênue e prestes a se romper a qualquer momento) se mantém integra, permitindo que os dois textos se complementem e forneçam coerência ao enredo.

O “Marechal de Ferro” foi eleito vice-presidente do Marechal Manuel Deodoro da Fonseca (1827-1892), em uma eleição indireta onde obteve mais votos do que o titular. Assumiu o poder entre 23 de novembro de 1891 e 15 de novembro de 1894, após a renúncia de Deodoro da Fonseca. Para alguns historiadores, Floriano foi o primeiro conspirador republicano, pois em nada contribuiu para ajudar o governo que o antecedeu. Conhecido como ter governado o país com métodos autoritários, não poupou energias para sufocar a 1ª e a 2ª Revolta da Armada, no Rio de Janeiro, e a Revolução Federalista, no Rio Grande do Sul. Apesar disso, ou talvez por causa disso, ao descrever a vida de Floriano (perfilhado pelo tio, participando da Guerra do Paraguai, leitor de biografias de Napoleão), a narrativa humaniza a figura histórica, confere traços emocionais a alguém que os livros de história não costumam elogiar.

Dois personagens acompanham Floriano. O primeiro é o sargento da marinha Silvino Honório de Macedo, um dos lideres da Revolta da Armada e que foi fuzilado como conspirador. Ao contrapor o ditador com um idealista, o texto mostra as distâncias que existem entre aqueles que exercem o poder e as reivindicações de caráter social. O segundo é Josina Vieira de Araújo Peixoto, esposa (prima, irmã adotiva) de Floriano, mãe de oito filhos, aquela que o acompanha em todos os momentos – embora não concorde com certas atitudes do marido.

Contemporaneamente, a cozinheira (que também é alagoana) está na companhia do advogado Ramil, de seu filho, Ramil Jr., e de um professor. Como não consegue ficar calado, o professor esbanja conhecimentos e faz incontáveis citações de filósofos, escritores, homens públicos. Todo esse esforço resulta em um arremedo de compreensão da situação político-econômica do Brasil. Em determinado momento, talvez para encerrar aquela algaravia, Ramil pai propõe ir até o centro da cidade, para ver uma manifestação popular que está ocorrendo naquele momento. Então, vamos ver essa política toda acontecendo?, pergunta para o filho, para a cozinheira e para a visita. Próximos do atordoamento, pois ninguém esperava por esse tipo de atitude, chamam um táxi e se dirigem à Cinelândia, onde constatam que a união da teoria com a prática causa uma nova cicatriz no corpo machucado do país.

Neste país é impossível qualquer alteração da ordem pública por parte do povo, diz um trecho da narrativa, parafraseando a frase famosa de Aristides Lobo que, quando da proclamação da República, afirmou que o povo assistiu a tudo bestializado, sem compreender os acontecimentos. Essa situação reverbera na atualidade, quando o parlamento brasileiro produziu um “golpe branco” (destituindo uma presidente da República que era contrária aos interesses de alguns segmentos políticos e econômicos) e que, salvo protestos episódicos, foi assimilado pelos brasileiros como um ato natural.  

A tradição (ou melhor, a traição) iniciada por Floriano se repetiu várias vezes na história da República e, provavelmente, será reencenada em muitas outras oportunidades. No Brasil, a História se tornou apenas um registro cronológico – jamais será uma ponte para o aprendizado. A democracia, como compete à ficção, se transformou em uma figura de retórica a enfeitar (enfeiar) os tristes tropiques.  

Ao refletir sobre dois momentos do Brasil, misturando em doses desiguais História e ficção, José Luiz Passos produziu um romance muito interessante (apesar da linguagem levemente áspera) e que não se exime de apontar o autoritarismo que permeia todos os instantes da vida política brasileira.   


TRECHO ESCOLHIDO


O professor disse, Veja só. Só quem dá opinião e se vangloria dela é a classe média. Isso tudo que vocês estão vendo é radicalismo da classe média. O aristocrata não dá opiniões, inspira obediência posando com a sua linhagem. O proletário só tem, como diz seu próprio nome, a prole. Não tem tempo para entrar no mercado das ideias, o dia é curto. O alto burguês, capitão de indústrias, por exemplo, comanda com a caneta e um carimbo. Não sobe no plano das abstrações, porque ali não há o que ele quer, acumular posses. O pragmatismo dessas três classes obviamente a classe média não herdou, verdade? Vive numa sopa de opiniões, aspirando ser como um aristocrata, consumir como um burguês e, ainda por cima, se queixar de que é difícil manter a dignidade do trabalho, terreno dos proletários.


Marx já disse, Karl Marx, que fez da economia uma filosofia. Num lindíssimo texto sobre a middle class inglesa, ele disse, A onda industrial que fez brotar o ressentimento dos trabalhadores com a aristocracia se amplia na migração desse conflito, digamos, que hoje opõe o proletário à classe média. Aliás, no saudoso século XX a agitação política dos trabalhadores ensinou a classe média a odiar o confronto político aberto, nas ruas, pondo abaixo as instituições do confronto. É como na canção que diz, Família não joga pedra em janela, joga pedra no gari. Aquele famoso sambinha, apesar de paulista, tinha jogo de cintura, concordam? Grande samba político, enganou até a ditadura. Enfim, a classe média ainda hoje imita a aristocracia na pose dos seus idealismos descolados do mundo material. Mas um dia vai ver que a reputação é monopólio da nobreza de sangue, logo em seguida vai ser fisgada por uma dessas filosofias do pós-moderno. Orgulhosa desse tino pela via do prazer, pela via crucis do corpo, como disse Clarice Lispector, vai ver os filhos sendo arrastados pra fora das universidades, a educação entregue a um bando de retrógrados, os evangélicos se metendo na política, e a polícia levando no domingo todo mundo pelo braço à igreja. Isso como, aliás, já está acontecendo em São Paulo. Eu estudei na USP mas sou muito crítico de São Paulo. Desses 65 mil que estão vendo aí, segundo a Polícia Militar do belo Rio, desses garanto que pelo menos 50 mil ou mais são de classe média. Estão balançando o chocalho das opiniões sem base.


Então o professor, cansado de discursar, fez uma pausa, lambendo os beiços. Depois continuou, Já na arte, por exemplo, isso é um pouco mais complicado. Que ela pertence e, ao mesmo tempo, não pertence ao reino das opiniões, e ele estirou um braço numa onda larga, lentamente, que se espalhava até sua mão apontar para um mural pintado no paredão de um prédio comercial. O grafite era um crânio imenso, com margaridas nos olhos, mastigando a bandeira do Brasil. Embaixo havia um lema. O PETRÓLEO É NOSSO. A PETROBRAS TAMBÉM. Mas o professor não leu isso. Em vez, falou, Vita brevis, ars longa, iudicium difficile. A vida é breve, a arte é longa e o juízo difícil, essa é do meu tempo de seminarista, ele admitiu.  

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