Toda biografia é como adivinhar
pelas costas o rosto de alguém. Damos à pessoa um traço possível. Quando ela se
vira, pode ser outra. Pode ser, aliás, o contrário, como uma estátua que estranha
o rosto de seu modelo vivo.
O
Marechal de Costas,
de
José Luiz Passos
A literatura brasileira contemporânea
estava desconectada com a História. Estava. Quer dizer, houve tempo que esteve
mais. Muito mais. Agora, sem saber distinguir se isso é bom ou ruim, está um
pouco menos. Mas, nesse caso, apesar do
trocadilho ruim, menos não é mais. Literatura é documento, é testemunho, é retrato
de época. Obviamente, uma parcela dos escritores em atividade procura – com
todas as forças e palavras – negar esse fato. Eles preferem preencher páginas e
páginas com variações em torno dos próprios umbigos. Sai cada sujeira...
Ao estabelecer uma ligação entre alguns
episódios da vida do alagoano Floriano Viana Peixoto (1839-1895), segundo
Presidente do Brasil, e uma cozinheira que participa de um comício em favor de
Dilma Rousseff, a narrativa consegue – através da comparação histórica – demonstrar
que a gênese política da República está alicerçada em algum tipo de golpe de
Estado. Suposta parente distante do Marechal, o que a torna uma espécie de
curiosidade na casa em que trabalha, cabe à mulher narrar os fatos contemporâneos.
Em compensação, os eventos ocorridos no Império e nos dois primeiros governos
da República estão descritos por um narrador impessoal, em terceira pessoa, que
constantemente recorre a fontes bibliográficas. Desta forma, como compete às linhas paralelas (que nunca se encontram no infinito), a espinha dorsal da narrativa
(que parece ser muito tênue e prestes a se romper a qualquer momento) se mantém
integra, permitindo que os dois textos se complementem e forneçam coerência ao enredo.
O “Marechal de Ferro” foi eleito
vice-presidente do Marechal Manuel Deodoro da Fonseca (1827-1892), em uma
eleição indireta onde obteve mais votos do que o titular. Assumiu o poder entre
23 de novembro de 1891 e 15 de novembro de 1894, após a renúncia de Deodoro da
Fonseca. Para alguns historiadores, Floriano foi o primeiro conspirador
republicano, pois em nada contribuiu para ajudar o governo que o antecedeu.
Conhecido como ter governado o país com métodos autoritários, não poupou
energias para sufocar a 1ª e a 2ª Revolta da Armada, no Rio de Janeiro, e a
Revolução Federalista, no Rio Grande do Sul. Apesar disso, ou talvez por causa
disso, ao descrever a vida de Floriano (perfilhado pelo tio, participando da
Guerra do Paraguai, leitor de biografias de Napoleão), a narrativa humaniza a
figura histórica, confere traços emocionais a alguém que os livros de história
não costumam elogiar.
Dois personagens acompanham Floriano. O
primeiro é o sargento da marinha Silvino Honório de Macedo, um dos lideres da
Revolta da Armada e que foi fuzilado como conspirador. Ao contrapor o ditador
com um idealista, o texto mostra as distâncias que existem entre aqueles que
exercem o poder e as reivindicações de caráter social. O segundo é Josina
Vieira de Araújo Peixoto, esposa (prima, irmã adotiva) de Floriano, mãe de oito
filhos, aquela que o acompanha em todos os momentos – embora não concorde com
certas atitudes do marido.
Contemporaneamente, a cozinheira (que
também é alagoana) está na companhia do advogado Ramil, de seu filho, Ramil
Jr., e de um professor. Como não consegue ficar calado, o professor esbanja
conhecimentos e faz incontáveis citações de filósofos, escritores, homens
públicos. Todo esse esforço resulta em um arremedo de compreensão da situação
político-econômica do Brasil. Em determinado momento, talvez para encerrar
aquela algaravia, Ramil pai propõe ir até o centro da cidade, para ver uma
manifestação popular que está ocorrendo naquele momento. Então, vamos ver essa
política toda acontecendo?, pergunta para o filho, para a cozinheira e para a
visita. Próximos do atordoamento, pois ninguém esperava por esse tipo de
atitude, chamam um táxi e se dirigem à Cinelândia, onde constatam que a união
da teoria com a prática causa uma nova cicatriz no corpo machucado do país.
Neste país é impossível qualquer
alteração da ordem pública por parte do povo, diz um trecho da narrativa,
parafraseando a frase famosa de Aristides Lobo que, quando da proclamação da
República, afirmou que o povo assistiu a tudo bestializado, sem compreender os
acontecimentos. Essa situação reverbera na atualidade, quando o parlamento
brasileiro produziu um “golpe branco” (destituindo uma presidente da República
que era contrária aos interesses de alguns segmentos políticos e econômicos) e
que, salvo protestos episódicos, foi assimilado pelos brasileiros como um ato
natural.
A tradição (ou melhor, a traição)
iniciada por Floriano se repetiu várias vezes na história da República e,
provavelmente, será reencenada em muitas outras oportunidades. No Brasil, a
História se tornou apenas um registro cronológico – jamais será uma ponte para
o aprendizado. A democracia, como compete à ficção, se transformou em uma
figura de retórica a enfeitar (enfeiar) os tristes tropiques.
Ao refletir sobre dois momentos do
Brasil, misturando em doses desiguais História e ficção, José Luiz Passos
produziu um romance muito interessante (apesar da linguagem levemente áspera) e
que não se exime de apontar o autoritarismo que permeia todos os instantes da
vida política brasileira.
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