Atlas de Nuvens, de David Mitchell, é uma
espécie de terremoto na paisagem do romance contemporâneo – a tradução no
Brasil ocorre tardiamente, depois de longos doze anos de defasagem com a
publicação original na Inglaterra. Ao chegar à última página do romance, muitos
leitores ficam de pernas para o ar, de ponta-cabeça ou qualquer outra figura de
linguagem que caracteriza a ausência de chão embaixo dos pés. A audácia de
combinar alguns elementos, aparentemente desconexos, como o romance de
aventuras, o escapismo científico e as complicações políticas, resulta em uma espécie
de sinfonia. Dessas que merecem aplausos. De pé. Durante quinze minutos. Ou
mais.
Os seis segmentos ficcionais que
estabelecem a espinha dorsal do romance fornecem uma releitura do mito de Teseu
e do Minotauro – do ponto de vista intelectual. A narrativa foi elaborada como
um continuum de histórias interligadas e que se multiplicam em espiral,
gerando outras conexões, outras referências, outras leituras. O proposito dessa
estrutura complicada, semelhante a um labirinto, induz à impressão de que será
difícil desmanchar o emaranhado. Felizmente, é um efeito falso. Na medida em que
o leitor começa a encaixar as peças e a elaborar mentalmente o desenho
narrativo, todas as dificuldades desaparecem e são substituídas pelos elementos que conduzem
para longe o ininteligível.
Ao utilizar uma estrutura narrativa
polimorfa (diário, epistolografia, romance policial, ficção científica,
entrevista, linguagem de baixo extrato gramatical) e o entrecruzamento de
narradores (em alguns momentos em primeira pessoa; em outros, em terceira
pessoa) o texto procura mapear o deslocamento histórico e geográfico de um
caderno de anotações. Entre 1850 (quando Adam Ewing, passageiro do Prophetess,
um navio de carga, escreve sobre os fatos que presencia) e uma data não identificada
no futuro (quando, um pouco antes de sua execução, Sonmi~451, uma estrutura
semi-humana, clonada para desempenhar tarefas subalternas, depõe sobre uma
tentativa de insurreição), muitos eventos ocorrem, muitas complicações se
sucedem. Em alguns momentos, a proposta desse fragmento está conectada com o aviso de que a modernização tecnológica se assemelha com o
extermínio da civilização. Nos interstícios temporais e narrativos surgem
em cena personagens pitorescos como Henry Goose, Robert Frobisher, RufusSixsmith,
Luisa Rey, Timothy Cavendish, Zachry Bailey, Meronyme, Hae-Joo Im. Eles aparecem,
desaparecem, reaparecem na narrativa como se fossem folhas sopradas pelo vento.
Ou seja, apesar do romance estar povoado por tragédias, a poesia também está
presente. O último pedido de Sonmia~451, por exemplo, é um “achado”, pois
consagra o que ela define como o momento em que conheceu a felicidade. A
máquina (seja lá o que for Sonmia~451) tem sentimentos e eles são humanos (seja
lá o que isso for).
O título do livro se refere a uma peça
musical, composta por Robert Frobisher. Em estado de completa penúria financeira,
Robert (um indivíduo sem grandes escrúpulos morais) procura salvação como
assistente de Vyvyan Ayrs, um compositor famoso e quase cego, que mora no
interior da Bélgica. Nos intervalos do trabalho, ele escreve dezenas de cartas
para Rufus Sixsmith, seu amante, relatando com riqueza de detalhes os
principais acontecimentos que protagoniza. Com exceção do afeto que sente pelo
companheiro, na sua escrita não há lugar para bons sentimentos. Precisando
viver no exílio intelectual, ele, por conveniência, se torna amante da esposa de Ayrs. Também rouba preciosidades bibliográficas de seu patrão (uma delas é o diário de Adam
Ewing). É a vida medíocre que o torna capaz de compor uma obra-prima, para logo
depois se suicidar, antes dos 25 anos.
Outro personagem impressionante é
Timothy Cavendish, um editor londrino. De trambique em trambique, ele consegue
manter os credores à distância. Um dia, contra todas as possibilidades, Timothy
ganha na loteria. Metaforicamente, é claro. Um de seus autores se torna um
best-seller. No instante em que começa a sobrar algum dinheiro em caixa, ele precisa administrar problemas que não estavam previstos. Talvez o mais
significativo seja o encarceramento em uma instituição para pessoas com
problemas mentais. A fuga e o desfecho dessa aventura são hilários.
Sem se apegar ao romance policial
clássico ou com a distopia que acompanha a ficção cientifica, Atlas de Nuvens consegue se utilizar desses suportes narrativos com maestria, de forma que o
enredo principal não sofra algum tipo de declínio. É o contrário. A união de
tantas formas narrativas – que muitos consideram como antagônicas – acrescenta
qualidade ao texto e permite dizer que Atlas de Nuvens renova a carpintaria
narrativa do romance, dando ao gênero literário um novo fôlego. E transforma a
estrutura tradicional (começo, meio e fim, nessa ordem) em uma sombra difusa do
potencial que pode ser explorado por escritores com imaginação e talento.
P.S: Há uma versão cinematográfica de Atlas de Nuvens, dirigida pelos irmãos Lilly e Lana Wachowski e por Tom Tykwer (2012) e que no Brasil recebeu o incompreensível título de A Viagem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário