O trash – no pior sentido da expressão
– nunca foi uma proposta estética com grande número de admiradores. Os sete
contos que compõem A Noite que Nunca Acaba, do potiguar Carlos Fialho, apostam
– de forma radical – no estranhamento, ou melhor, no impacto emocional que
acompanha o horror. Além disso, o livro está dividido em duas vertentes temáticas
que – por definição – deveriam ser opostas. Ao se utilizar de um “gancho”
narrativo, o autor conseguiu realizar a proeza de uni-las de forma coerente,
embora o resultado final não seja exatamente agradável.
Os três primeiros contos de A Noite que
Nunca Acaba induzem um caminho próximo do realismo agressivo que caracteriza a
literatura policial – aquela que bebeu na fonte inaugurada pelo Rubem Fonseca e
que, recentemente, foi rejuvenescida pelo paraense Edyr Augusto. A história de
três amigos de classe alta, travestidos de justiceiros,que resolvem combater a
pedofilia e o tráfico de drogas em Natal, capital do Rio Grande do Norte, potencializa a
reação de alguns grupos sociais que – ungidos pelo extremismo moralista – estão
descrentes da eficiência do Estado como responsável pelo controle social. Essa
postura, gerada por um comportamento político discutível, costuma atrair grupos
fascistas que, sob a alegação de obter um mínimo de justiça, cometem crimes tão
horrorosos quanto os que dizem combater. Em Anjos, o autor, em ritmo de crônica, introduz os
personagens e a motivação para as ações. Caídos narra as ações e a prisão do
grupo. Renascidos, o mais longo dos textos, elabora, por vias transversas, uma
espécie de redenção religiosa, pois (em razão de um fato incidental) consegue
premiar assassinos – que, ao final de algum tempo de encarceramento, são
inocentados de todos os crimes que cometeram. A selvageria instrumental é
substituída pela selvageria jurídica. Além disso, a cena que ocorre no presídio
está absolutamente conectada com a realidade concreta que se reflete na
incompetência governamental para controlar o poder “intramuros” que existe no
mundo carcerário.
Em alguns momentos, os textos apresentam
repetições nas informações – como se desconfiasse da falta de atenção do leitor
ou tivessem sido escritos em períodos cronológicos bem distintos (e,
obviamente, não foram revisados depois). Um bom editor evitaria esses deslizes,
cortaria vários parágrafos e proporia mudanças estruturais. Apesar disso, os
três contos funcionam como artefatos literários.
O segundo bloco também está dividido em
três contos. A diferença está na quebra da verossimilhança. A Cidade Morta relata a história de Alex de Sousa, que estava servindo em missão humanitária no
Haiti. Antes de voltar para casa, ele vai assistir um ritual de vodu. No meio
da cerimônia, acontece algo imprevisto e o sacerdote é morto por seus acólitos
– um pouco antes de receber dezenas de tiros, morde o braço de Alex. Na viagem
para o Brasil, o soldado se sente mal e morre. Em Natal, durante o velório,
ressuscita como zumbi. A partir desse momento, o enlouquecimento se torna a
constante. O número de mortos-vivos se multiplica de forma geométrica e atinge
mais da metade da população urbana. A situação só readquire alguma normalidade
quando as Forças Armadas entram em ação e executam o exército zumbi. Refúgio se concentra no isolamento de alguns dos sobreviventes. Dentro do bar “Cowboy’s”,
enquanto esperam por algum tipo de salvação, alguns dos integrantes da fauna
alternativa de Natal (inclusive Glauco e Fêfo, dois dos personagens dos três
primeiros contos) conversam sobre assuntos variados. A trilogia se completa com Vida
Nova. Para surpresa do leitor, o texto relata duas histórias de amor. Para
fugir da fúria zumbi, Aurélio e Gibson se escondem dentro de um supermercado –
onde cometem várias transgressões para poderem continuar vivendo. Em paralelo, Vivian,
também sobrevivente do caos, sonha com noites intensas de sexo com Aurélio –
que é seu colega de trabalho. Nesse triangulo, a soma do quadrado dos catetos
não corresponde ao quadrado da hipotenusa. A adrenalina resultante da luta
contra humanos e zumbis aproxima – afetiva e sexualmente – Aurélio e Gibson. Em
um restaurante, ao constatar esse fato, Vivian perdeu o apetite por completo e
em vários sentidos. O grand finale é espetacular: uma
explosão atômica – que destrói a cidade de Natal – e une, finalmente, os três
personagens. Vivian, em momento anterior, em ironia avant la lettre, comenta que até o apocalipse tem o
seu lado bom.
O sétimo conto, Com Outros Olhos,
parece ter sido incluído no livro para “fazer volume”.
Ao terminar a leitura, cabe ao
leitor decidir se o autor se utilizou do nonsense de A Noite que Nunca
Acaba para se divertir ou se o livro constitui uma cristalização literária de algum tipo de acerto de contas
com Natown (sic!), a cidade em que vive, e com alguns segmentos sociais e
profissionais (Utilizando o apurado senso de oportunidade que lhes é peculiar,
os doutores aproveitaram para fazer talvez a coisa que gostam mais do que
salvar vidas e cura doentes: ganhar dinheiro). Independente da resposta ou de
outra interpretação que possa ser feita, sobra a ligeira sensação de que a
união do terror real (primeira parte) com o terror irreal (segunda parte) apresenta
alguma originalidade e muita maluquice. Estômagos mais delicados rejeitarão o
volume com a alegação de que os sete contos se caracterizam por profundo mau
gosto.
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