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segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

AS SOMBRAS DE LONGBOURN

Em Orgulho e Preconceito, o clássico escrito por Jane Austen, um fator muito importante passa despercebido. Envolvido pelo charme e a beleza de Jane e pela inteligência e a determinação de Elizabeth (Lizzy) Bennet, o leitor não percebe que a narrativa conseguiu eliminar a presença da criadagem no andamento ficcional. Em outras palavras, as seis mulheres da família Bennet (a mãe e as cinco filhas) parecem ser autossuficientes. Elas tocam piano, cantam, bordam, cultivam o hábito de ler romances e estão preparadas para casar com homens bonitos e ricos. Ao mesmo tempo, por mais estranho que isso possa parecer, ninguém consegue imaginar qualquer uma das Bennet lavando roupa ou queimando os dedos enquanto preparam costelas de carneiro com hortelã para o clã familiar. Elas não realizam as tarefas domésticas. E isso vai de encontro com um conceito básico da Inglaterra do século XIX, os indivíduos (homens, mulheres) estavam divididos em duas classes sociais bastante distintas: patrões e empregados. Em outras palavras, o grande medo da Sra. Bennet adquire visibilidade no esforço descomunal que realiza para que cada uma de suas filhas consiga obter um bom casamento. O contrato matrimonial deve ser acompanhado por uma quantia substancial de dinheiro. Quanto mais, melhor. Se elas não conseguirem um marido rico (que não precisa ser – necessariamente – bonito ou jovem) possivelmente terão que trabalhar para poder garantir um mínimo de conforto. E isso significa um rebaixamento socioeconômico inadmissível.

Em As Sombras de Longbourn, a inglesa Jo Baker conseguiu realizar uma proeza: recontar Orgulho e Preconceito do ponto de vista dos empregados domésticos. Em muitos pontos, o livro se parece com a série televisiva Dawnton Abbey. Também há pontos de contato com trechos do romance Vestígios do Dia, de Kazuo Ishiguro. No entanto, o grande diferencial está no preenchimento das lacunas do enredo original. Ao criar um mundo paralelo, construindo outra ficção – com personagens que de outra forma continuariam sendo apenas figuras acessórias, subalternas, elementos decorativos –, há o revelar de um novo horizonte romanesco. A luta de classes – que algumas narrativas fingem ignorar – está muito bem delineada, embora não se manifeste de forma ostensiva. Completamente marginalizados em Orgulho e Preconceito, cada um dos empregados de Longbourn (a propriedade da família Bennet, em Hertfordshire) está ciente das limitações impostas pelo lugar que ocupam no mundo ordenado – a repressão política e econômica reduz os indivíduos ao binômio dominador e dominado.

A protagonista de As Sombras de Longbourn, Sarah, em muitos aspectos, encontra em Elizabeth Bennet a sua imagem especular. Ela também é uma feminista avant la lettre – embora suas ações tenham menor alcance, porque limitadas ao ambiente subalterno. Contrariando os padrões da época, Sarah têm anseios de felicidade. E que se completam no entendimento de que não existem elementos capazes de impedir que os sonhos se concretizem. Com coragem e determinação, ela rompe com algumas barreiras – e, de uma maneira muito particular, emerge da tempestade mais livre, mais senhora de sua sexualidade, menos acomodada com a situação de ser apenas uma criada em uma família composta por mulheres mimadas.

Diante dos olhos de Sarah, o mundo se torna menos opaco quando surge em cena James Smith. A partir desse divisor de águas, há uma mudança palpável no comportamento da serviçal submissa que passa a usufruir dos prazeres advindos do contato com o corpo do amante. A sombra humana (sem identidade, sujeito passivo da própria história) se transforma em mulher. E adquire a liberdade que jamais imaginou existir.

James, um soldado sobrevivente das guerras napoleônicas, traz no corpo as cicatrizes da barbárie – acusado de deserção, foi chicoteado cinquenta vezes. Assim como Sarah, não conheceu os pais. Mas, há uma diferença substancial entre as duas histórias e que se reduz à eterna repetição do envolvimento amoroso entre o patrão e a empregada (que fica grávida e precisa entregar o filho para um casal desconhecido). Depois que saiu do exército, James – talvez inconscientemente – vai procurar por uma base de sustentação em Longbourn. É lá que estão seu pai e sua mãe. E é lá que encontra Sarah.

As Sombras de Longbourn não possui aqueles momentos de humor ou de glamour de Orgulho e Preconceito, pois se concentra nas atividades subterrâneas que ocorrem no mundo dos serviçais   atividades fundamentais para que as mulheres do andar de cima possam desempenhar seus papeis sociais com desenvoltura e elegância. A compensação surge através da soma desses fatos corriqueiros, que permitem visualizar um painel socioeconômico da Inglaterra no século XIX. Além disso, o livro conta uma aventura amorosa – que é retratada com delicadeza e paixão.    


TRECHO ESCOLHIDO


E então ela fez uma coisa que nem por um instante ele julgara possível. Deixou a caixa cair com um baque surdo na trilha gelada, deu um passo à frente, passou o braço em torno da cintura dele, ficou na ponta dos pés e o beijou.


Por ser, em muitos aspectos, uma pessoa de espírito prático, Sarah soubera, o tempo todo, que estava agindo com informações insuficientes. Aquele único beijo em Ptolemy, provocado pela bebida, era tudo em que ela podia se basear: não fora muito bom, mas ela simplesmente não tinha como saber se os beijos eram assim mesmo, ou se fora apenas aquele beijo ou aquela pessoa. Não tinha como saber se o que sentira por Tol Bingley – a tontura, sua vaidade recompensada, o desconforto físico – era amor ou qualquer outra coisa em alto grau. E agora ali estava James, com a mão em torno de seu braço, com seu toque, sua proximidade e sua voz grave e ansiosa, e cada elemento desses parecia importante, todos lhe causavam sensações desconhecidas e agradáveis. Ela se sentiu abrandar, distender-se, como uma gata se deleitando, lânguida, diante do fogo. E só existia o agora, só aquele momento, em que ela vacilava junto ao precipício entre o mundo que ela sempre conhecera e o mundo além, e se ela não agisse agora, jamais conheceria o outro lado.


Ela o pegara, por assim dizer, desprevenido. Os lábios de Sarah colidiram com os dele, surpreendendo-o. James cambaleou, apoiando-se no braço que ela passara em sua cintura. Os lábios de Sarah eram macios, quentes e tímidos, e ela apertava com força seu corpinho no dele. Impossível resistir. James passou os braços ao redor da cintura dela, puxou-a para si e deixou-se beijar.


Nada mais havia além do calor da boca de James e o calor do corpo esguio dele contra o dela. Sarah começou a ofegar. Seu corpo tornou-se ansioso, ávido e ela voltou a apoiar os pés no chão, o coração aos saltos. Apoiou-se nele, abalada pelo que estava acontecendo.


“Ah”, arfou.


Sentia as mãos de James em sua nuca, o outro braço em volta de sua cintura, apertando-a contra si. Ela apoiava a cabeça no peito dele e sentia as batidas de seu coração. Piscava no escuro, os olhos úmidos. Ninguém a segurara assim, nunca, desde criancinha.


“Você volta comigo?”, ele perguntou depois de algum tempo, a mão ainda na nuca dela, onde a pele estava quente e o cabelo, frio.


Houve uma longa pausa, ela não se mexeu nem disse nada. Depois James sentiu no peito que ela respondia: Sarah fez que sim com a cabeça.  

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