Em Orgulho e Preconceito, o clássico
escrito por Jane Austen, um fator muito importante passa despercebido.
Envolvido pelo charme e a beleza de Jane e pela inteligência e a determinação
de Elizabeth (Lizzy) Bennet, o leitor não percebe que a narrativa conseguiu eliminar
a presença da criadagem no andamento ficcional. Em outras palavras, as seis
mulheres da família Bennet (a mãe e as cinco filhas) parecem ser
autossuficientes. Elas tocam piano, cantam, bordam, cultivam o hábito de ler
romances e estão preparadas para casar com homens bonitos e ricos. Ao mesmo
tempo, por mais estranho que isso possa parecer, ninguém consegue imaginar qualquer
uma das Bennet lavando roupa ou queimando os dedos enquanto preparam costelas de
carneiro com hortelã para o clã familiar. Elas não realizam as tarefas
domésticas. E isso vai de encontro com um conceito básico da Inglaterra do
século XIX, os indivíduos (homens, mulheres) estavam divididos em duas classes
sociais bastante distintas: patrões e empregados. Em outras palavras, o grande medo da
Sra. Bennet adquire visibilidade no esforço descomunal que realiza para que
cada uma de suas filhas consiga obter um bom casamento. O contrato matrimonial deve
ser acompanhado por uma quantia substancial de dinheiro. Quanto mais, melhor.
Se elas não conseguirem um marido rico (que não precisa ser – necessariamente –
bonito ou jovem) possivelmente terão que trabalhar para poder garantir um
mínimo de conforto. E isso significa um rebaixamento socioeconômico
inadmissível.
Em As Sombras de Longbourn, a inglesa
Jo Baker conseguiu realizar uma proeza: recontar Orgulho e Preconceito do
ponto de vista dos empregados domésticos. Em muitos pontos, o livro se parece
com a série televisiva Dawnton Abbey. Também há pontos de contato com trechos
do romance Vestígios do Dia, de Kazuo Ishiguro. No entanto, o grande
diferencial está no preenchimento das lacunas do enredo original. Ao criar um mundo paralelo, construindo outra ficção – com
personagens que de outra forma continuariam sendo apenas figuras acessórias,
subalternas, elementos decorativos –, há o revelar de um novo horizonte
romanesco. A luta de classes – que algumas narrativas fingem ignorar – está
muito bem delineada, embora não se manifeste de forma ostensiva. Completamente
marginalizados em Orgulho e Preconceito, cada um dos empregados de Longbourn
(a propriedade da família Bennet, em Hertfordshire) está ciente das limitações
impostas pelo lugar que ocupam no mundo ordenado – a
repressão política e econômica reduz os indivíduos ao binômio dominador e dominado.
A protagonista de As Sombras de
Longbourn, Sarah, em muitos aspectos, encontra em Elizabeth Bennet a sua imagem
especular. Ela também é uma feminista avant la lettre – embora suas ações
tenham menor alcance, porque limitadas ao ambiente subalterno. Contrariando os
padrões da época, Sarah têm anseios de felicidade. E que se completam no entendimento
de que não existem elementos capazes de impedir que os sonhos se concretizem. Com
coragem e determinação, ela rompe com algumas barreiras – e, de uma maneira
muito particular, emerge da tempestade mais livre, mais senhora de sua
sexualidade, menos acomodada com a situação de ser apenas uma criada em uma
família composta por mulheres mimadas.
Diante dos olhos de Sarah, o mundo se
torna menos opaco quando surge em cena James Smith. A partir desse divisor de
águas, há uma mudança palpável no comportamento da serviçal submissa que passa a
usufruir dos prazeres advindos do contato com o corpo do amante. A sombra humana
(sem identidade, sujeito passivo da própria história) se transforma em mulher.
E adquire a liberdade que jamais imaginou existir.
James, um soldado sobrevivente das guerras
napoleônicas, traz no corpo as cicatrizes da barbárie – acusado de deserção, foi
chicoteado cinquenta vezes. Assim como Sarah, não conheceu os pais. Mas, há uma
diferença substancial entre as duas histórias e que se reduz à eterna repetição
do envolvimento amoroso entre o patrão e a empregada (que fica grávida e
precisa entregar o filho para um casal desconhecido). Depois que saiu do
exército, James – talvez inconscientemente – vai procurar por uma base de
sustentação em Longbourn. É lá que estão seu pai e sua mãe. E é lá que encontra
Sarah.
As Sombras de Longbourn não possui
aqueles momentos de humor ou de glamour de Orgulho e Preconceito, pois se
concentra nas atividades subterrâneas que ocorrem no mundo dos serviçais – atividades fundamentais para que as mulheres do andar de cima possam desempenhar seus papeis sociais com desenvoltura e elegância. A
compensação surge através da soma desses fatos corriqueiros, que permitem visualizar
um painel socioeconômico da Inglaterra no século XIX. Além disso, o livro conta
uma aventura amorosa – que é retratada com delicadeza e paixão.
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